sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A seca, o filósofo e os pregadores sonsinhos

Na aldeia aonde volto sempre que posso, há uma figura de referência – como há em todas as aldeias e em todos os sítios deste mundo – um tanto ou quanto excêntrica e deveras enigmática.

Põe pose de filósofo e vai filosofando, regando a produção intelectual com tintinhos que os amigos lhe vão pondo na mesa onde se senta, palrando.

Sem ouvintes e sem tintinhos, usa a mesa para folhear jornais que muitos afirmam não saber ler.

Tem de nome José. Claro, Zé e de alcunha, que ninguém por ali se lembra as razões, Abóbora.

É, portanto, O Zé Abóbora.

O filósofo.

Está de serviço (quase permanente) durante quase toda a hora de «expediente» na taberna do João Vargas.

O Zé Abóbora tem sempre uma opinião sobre tudo e quase sempre, faz questão de discordar de quase tudo. Nem sei mesmo porque afirmei:«quase sempre».

Hoje de manhã atirei-lhe:«A continuar assim, sem chover, vamos ter seca».

Nah,… ripostou de imediato:«se continuar assim, as águas subterrâneas, porque precisam de oxigénio, virão para a superfície e irão para os ribeiros e ribeiras e depois para os rios, claro que depois as pessoas têm é de a ir buscar aí, porque ela não cai do céu».

Claro.

Paguei-lhe o merecido tintinho – depois de tão profunda tirada – mais que merecido e ainda mais porque saí dali a pensar:« Porque carga de águas (vindas das entranhas das terras ou das alturas dos céus) insistirão certas cabeças esgrouviadas em defender que a austeridade (asfixiante) é a solução para a «crise»?

Porque será?

Quererão imitar o Zé Abóbora e argumentar o impensável?

Julgo que não.

Até porque a maioria (hoje deu-me para a mania de deixar exceções) destes argumentadores, é bem mais estúpido que o filósofo da taberna do João Vargas.

A austeridade que receitam não é remédio para a crise, mas sim forma e meio para a destruição do estado social e para aniquilar direitos dos trabalhadores.

Quando o trabalho for ao custo da uva mijona e quando o trabalhador não tiver alternativas e tiver que aceitar a escravatura, então acabará a «crise».

Não estivesse o Zé Abóbora já cansado (ou embriagado?) e eu voltaria ainda ao seu escritório para lhe perguntar, uma outra coisa.

Porque é que os sonsinhos dos pregadores do sistema, face à convocação da Greve Geral pela CGTP, insistem em afirmar, que o faz, isolada?

A UGT quando trai e assina não está isolada? Isolada está a CGTP que mandatada pela razão e confortada com o apoio da mole imensa que encheu o Terreiro do Paço, assume as suas responsabilidades.

A Greve Geral não acrescenta problemas ao problema.

A Greve Geral é uma resposta ao problema.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Tento na língua

O gaiato há muito que rondava as mesas. Tinha uma vontade enorme de se sentar ali, jogando a bisca com os homens.
Afinal ele já trabalhava com eles nos campos, porque raio não o deixariam estes, sentar-se ali e jogar uma cartada?
Quem sabe até, beber com eles um bagacinho.
Mas não. Era frequentemente corrido.
«Já o carapau tem tosse, não?!. Ainda agora tirou os cueiros e já quer sentar-se ao lado dos homens»
Passaram semanas, meses e ele sempre insistindo e sempre corrido.
Até que numa noite e sem que nada lhe indicasse tal desfecho, tendo o Ti Ze Francisco que sair mais cedo, recebeu o ansiado convite: «senta-te aí cachopo, vamos ver se ao menos conheces as cartas».
E eis que se senta, junto dos homens, pronto para a primeira suecada a sério, da sua vida. Não teve sequer tempo para apreciar o momento, o ritmo das jogadas exigia a sua máxima atenção.
Não podia deixar mal vistos aqueles que lhe tinham dado aquela possibilidade.
E lá foi, jogando. Com o andar da coisa, já batia as cartas como os homens - mesmo que à custa de fortes dores nas nozes dos dedos.
E foi com esse empenho que, sem se aperceber, pôs a mão sobre a brasa incandescente do  cigarro poisado na borda da mesa e num impulso, solta um estridente: «fo….-se».
Acto contínuo, o senhor João, o fumador, abocanha-lhe os colarinhos e grita-lhe: «Tento na língua menino…não penses que é por berrares malcriadices que te tornas homem respeitado…»

Lembrei-me desta história, quando  ouvi o senhor primeiro ministro, qual menino armado ao pingarelho, malcriadamente, chamar piegas aos portugueses.
Aos portugueses desempregados, aos portugueses a quem tira direitos, salários, a quem tira reformas, a quem aumenta desumanamente o preço dos transportes, dos bens alimentares, das taxas moderadoras.

E ao senhor primeiro ministro só me apetece dizer-lhe:
Tome tento na língua.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

«Contaram-me uma vez…»

Há mil maneiras, tal como o número das receitas de bacalhau, de começar a contar um conto ou uma pequena estória.

Nunca percebi, porque não, novecentos e noventa e nove, ou mil e cinco, mas essa é outra «estória».

E assim sendo,ou seja, começando assim, começo pela forma clássica: «era uma vez», fazendo uma pequena adaptação, para: «contaram-me uma vez».
Então, contaram-me uma vez, que há uns anos, não muitos, numa aldeia situada próximo do Guadiana - este grande  rio do sul cujas águas retiveram ali para os lados de Alqueva - um pastor de cabras criou um grande alvoroço um dia, lá na aldeia.
Estou mesmo em crer que o episódio se passa na aldeia de Alqueva, mas isso já não posso garantir.
Sei que posso acrescentar um ponto, mas não quero acrescentar este.
Voltando. Foi tão grande esse alvoroço, que ainda hoje perduram  vivos na memória de todos , os seus rocambolescos episódios.
Farto de subir e descer montes atrás das cabras e tendo uma prodigiosa capacidade para inventar estórias - de tal forma que ele até já julgava que o seu nome era Eh Lá - o pastor resolveu numa manhã quente de verão correr esbaforido para a aldeia a gritar que havia caído um avião, lá em baixo junto ao rio.
Antes que a coisa  se desenquadre, explique-se a questão do «Eh Lá». Esta era a expressão que todos faziam sempre que o pastor começava nas suas delirantes criatividades. Tipo: «vi hoje uma cobra que media prá aí …» Eh Lá.
De tal forma que já se dizia, quando se aproximava: «vem aí o Eh Lá»
Mas o Eh Lá naquela manhã foi muito convincente. Transpirava por todos os poros e apresentava um semblante verdadeiramente transtornado. E foi gritando de rua em rua entrando na venda e nas tabernas: «caiu um avião , lá em baixo no rio».
Até o padre especou.
E as pessoas  começaram a formar pequenos grupos e a deslocarem-se para o rio. Podia ser preciso fazer alguma coisa por alguém, coitados.
O pastor ainda correu e gritou mais um pouco, mas parou quando reparou que já não via ninguém nas ruas.
Estranhando, interrogou-se : «Querem ver que foi verdade!» E ala que pôs os pés ao caminho direito ao rio, para verificar.
Lembrei-me desta estória contada, quando agora dou por mim a assistir a uma profusão de criminosas medidas contra os direitos e a dignidade dos trabalhadores e constato que os «Eh Lá» que estão no Governo, dizem candidamente: «Foi uma medida difícil, mas necessária».
Difícil foi sem dúvida, mas para quem sofre as suas consequências, não para quem a tomou.
Necessária, certamente, mas para quem ela se destina a beneficiar e não para os trabalhadores e para o país.
Será que algum dia daremos por um destes «Eh lá» a interrogar-se: «Querem ver que é verdade?!».
Estou em crer que não, porque estes sabem e tem consciência das mentiras que pregam, enquanto o pobre diabo do pastor andava simplesmente entediado com a vida que levava…