domingo, 27 de janeiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Conto II – 1.º de Maio

(Sempre em memória do Gama e do Pedro. Presentes nestes contos de passagem).

A viagem tinha sido longa e penosa.
De onde veio, até aqui, a esta cidade aos seus olhos grande, foram quase duas horas de viagem.
Sentados nos duros bancos de ferro que eram encaixados nas abas laterais do reboque do trator e que acompanhavam dolorosamente todos os abanões do percurso, contemplavam minuciosa e atentamente a paisagem.
O barulho ensurdecedor do trator somado ao ranger ferroso provocado pelo atrito entre bancos de ferro e roulotte de ferro, convidava à contemplação, já que tornava difícil as falas. 
Um ou outro comentário tinha que ser gritado e depois transmitido ao longo dos bancos.
Para quase todos, quase tudo era novo.
Chegados  às portas da cidade, o deslumbramento foi total.
Grandes e grossas muralhas, exclamou alguém.
Olhem…dali vêm mais tratores. Eh pá, tanta gente.
E quanto mais entravam na cidade, mais gente confluía.
Nos passeios batiam palmas, acenavam e davam vivas ao 1.º de Maio.
Nunca tinha visto tanta gente junta.
Alguns dos seus companheiros de viagem, homens mais velhos, já lhe tinham falado das comemorações do ano passado, o primeiro 1.º de Maio, como lhe chamaram.
Mais do que hoje, muito mais, afirmavam.
O Zé Augusto disse-lhe que ainda há pouco tempo, em Fevereiro ali tinha estado e eram muitos mil. E se estava um dia  bera, esse. Chovia. Mas mesmo assim, ninguém arredou pé.
Disse-lhe ainda que nesse dia tinham decidido avançar para a ocupação das herdades. Os patrões recusam cada vez mais dar trabalho às pessoas.
Mas apesar dos relatos de presenças anteriores, ele é a primeira vez que participa e tem dificuldade em aceitar que assim tenha sido.
Para ali conflui um mar humano.
E gente feliz. Muitos cravos vermelhos, muitas bandeiras, muita cor.
Todos tinham trazido farnel. A festa iria terminar num descampado onde se juntariam a comer. Partilhariam comeres, beberes, alegrias e sonhos.
Aquela era uma festa de partilhas.
Comer farnel no campo  não era para ele novidade. Já sabia o que era tomar refeições assim e até era a parte que menos o estava a entusiasmar.
Ainda há muito pouco tempo teve que comer a tigela de feijão com massa que lhe haviam arranjado para o almoço, protegido sob um guarda chuva e debaixo de uma grande chuvada.
Mas, festa é festa. E ele até traz rancho melhorado. A mãe fez-lhe pataniscas e pastéis de bacalhau.
Juntos, agora na praça grande, escutam em silêncio os discursos de homens que falam de cima de um palco.
De vez em quando os discursos são interrompidos com palmas e gritos de palavras de ordem.
Os vivas à liberdade são recorrentes.
E ele, parece nem ter conhecido outro tempo. Ali está, como se acabasse de brotar para a vida.
Viva a liberdade? Mas se é liberdade a vida.
Sabe que houve um tempo anterior .Um tempo de negridão, de medos.
Mas esse tempo parece-lhe agora só um sonho mau.
O tempo é o tempo da festa de agora, da liberdade gritada e vivida. O tempo dos deslumbramentos, da descoberta desta cidade grande.
O tempo de toda esta gente, de muita gente, como ele nunca antes tinha visto.
O tempo das cores, dos vermelhos garridos, das pessoas bonitas.
Nunca tinha visto tanta rapariga bonita…
Os discursos acabaram e vão tomar de novo as roulottes. Os vindos de fora, porque os outros seguirão a pé ladeando a enorme coluna de máquinas e pessoas.
Na rua íngreme que desce da praça, de pé na roulotte dá por si a cruzar olhares com uma cara bonita que lhe parece acenar da roulotte que segue atrás.
Bonita a moça. Como parecem todas bonitas as moças que aqui vieram hoje…
No percurso ao longo de algumas ruas da cidade, pareceu-lhe por mais de uma vez que os seus olhares se cruzavam.
Trazia um chapéu de palha  de abas largas e um lenço vermelho ao pescoço. E um sorriso quase tão grande como a grandeza daquela coluna de tratores.
Esta e as gentes que a ladeiam dirigem-se, naquele ritmo cadenciado, para uma colina,  nos limites da cidade. Um enorme campo livre com boas sombras de grandes sobreiros.
De lá avista-se quase toda a cidade.
Ali chegados é hora de sacar dos farnéis. Numa zona central está montado um palco.
Belas sombras de grandes sobreiras, como se diz por lá, dos sítios de onde veio.
Em volta há umas barraquinhas onde se vendem cervejas e sandes.
Numa boa sombra, junta-se com outros rapazes da terra e atiram-se esganados aos comes. Um deles ficou de serviço aos bebes.
E que trabalheira este teve e que fresquinhas elas estavam.
Do palco vinham sons de músicas e canções que não conheciam. Algumas delas, atreveram-se eles, já bebidinhos, a trotear.
Chamado pelo ritmo e desinibido pela bebida, aproxima-se do palco.
Gostou do que ouviu, foi buscar mais uma cerveja e sentou-se no chão a apreciar.
- Olá, ouviu ao seu lado.
Olhou e viu a rapariga do chapéu de palha e lenço vermelho ao pescoço. Morena, mas de um moreno diferente das raparigas morenas pelo abrasar do sol, que conhece. Um moreno suave, delicado.
- Olá, reponde, inseguro.
- Eu sou a Anabela e tu como te chamas?
- João, disse baixinho, quase a medo.
- Já te tinha visto na roulotte. De onde vieste?
- De uma aldeia de perto de Monte Maior.
- Eu vivo aqui, na cidade, embora os meus pais também não sejam daqui. Estás a gostar?
- Muito! nunca tinha visto nada assim. Também poucas vezes tinha saído da aldeia…, aqui nunca tinha vindo…, desabafa.
- Nunca tinhas vindo a Évora?! Tens de aqui voltar só para a visitar, é uma cidade linda.
- Não creio que possa. Trabalho no campo e as possibilidades são poucas…
- Não digas isso. Vais voltar de certeza.
- Uns homens da minha terra disseram-me que no ano passado também houve uma festa assim - disseram mesmo que com mais gente do que este ano - tu vieste?
- Não. O meu pai achou que era ainda muito nova e que não era seguro.
- Não era seguro? Porquê?!
- Porque o regime tinha acabado de ser derrubado e ainda havia muitas dúvidas.
- Há muitas conversas dessas, sobre o regime e outras que eu não percebo.
- Mas estás em muito boa altura para perceber. Não és comunista?
- Nem sei o que isso é e tu és?
- Sim. Sou da UEC - União dos Estudantes Comunistas.
- Já te disse. Trabalho no campo, não sou estudante.
- Mas podes ser comunista, ou do MJT que é o Movimento da Juventude Trabalhadora. - Bebes outra cerveja? Vou buscar duas?
- Não. Vou buscar eu. Onde é que já se viu uma rapariga pagar uma rodada e beber uma cerveja, se fosse lá na minha aldeia…
- Não sejas reaccionário. Senta-te e espera que eu trago-as já.
- Não seja o quê?!
- Esquece. Espera aqui por mim.
Num ápice voltou com as cervejas. Sentou-se a seu lado e durante os primeiros tragos não trocaram palavras.
Ele, agora mais desinibido, retomou a conversa e falou-lhe dos trabalhos do campo e contou-lhe que só agora havia trabalho porque antes era só por alguns períodos e não era para todos. Agora, o Sindicato mandava para as herdades os trabalhadores sem trabalho e os patrões tinham que os aceitar. E pagar-lhes. Recorda-se que no primeiro dia, quando se apresentou para ir trabalhar ía acompanhado do pai que também estava desempregado e que tinha trabalhado naquela mesma herdade durante muitos anos e do feitor ter dito - seja bem vindo Sr. Francisco - esta casa também é sua e de se ter roído por dentro quando o pai o recriminou por prontamente ter chamado fingido ao feitor - deixe estar Sr. Francisco, o rapaz está cheio de sangue na guelra . Lembra-se e contou-lhe  - sem despegar - a tristeza que teve quando saiu da escola e teve que ir procurar trabalho porque a família precisava do seu ordenado e os medos que com os outros rapazes sentia com o aproximar das «sortes» - ainda há pouco tempo tinha ido a enterrar - lá na terra - um rapaz não muito mais velho do que ele e que tinha morrido na guerra do ultramar - morto plos turras - diziam as pessoas. E lembrou-lhe ainda que a primeira vez que tinha ouvido falar em comunistas, tinha sido no mais absoluto silêncio e era referente a um homem lá da terra que era muitas vezes preso e  - porque lhe parecia boa pessoa - se interrogou por quê e a mãe lhe ter dito que era por ser comunista e por ler livros proibidos.
Reparou que enquanto falou, ela se fixou ternamente no seu olhar. Que pele morena tão bonita ela tem e que olhar, tão doce, tão penetrante.
E ela falou-lhe e disse-lhe que era filha de um militar que tinha estado na guerra e que os turras de que as pessoas aqui falavam eram homens e mulheres que lutavam contra quem lhe roubava a pátria. O pai e outros militares fartos daquela e doutras situações que se viviam por aqui tinham se revoltado contra o governo e que tinha sido dessa revolta que tinham resultado todas aquelas alterações, as pessoas terem trabalho, viverem em liberdade e serem felizes. Ela andava a estudar, no liceu, e agora andava a preparar com outros camaradas a realização de eleições para os estudantes poderem escolher os seus representantes junto da direção e  para assegurarem os seus direitos.
E falaram, falaram. Até perderem a noção do tempo. Levantaram-se e afastaram-se um pouco. Para verem lá do cimo a cidade, disse-lhe ela. E era de facto muito bonita a paisagem. O Sol, começava a esconder-se no horizonte e dava um contorno avermelhado à coroa de muralhas de que ali avistavam.
Ela deu-lhe a mão. Disse-lhe que o queria ver mais vezes porque tinham muito mais para conversar.
Ele sentiu o seu aproximar e estremeceu quando os lábios dela tocaram nos seus. Nunca tinha sido assim beijado.
- Vá e agora chegas lá à terra e vais-te inscrever na Juventude Comunista. Vai ser criada em breve a UJC - União da Juventude Comunista, para que os jovens trabalhadores também tenham a possibilidade de ter uma organização juvenil E vais ver que nos vamos ver mais vezes. Adeus.
E ele ali ficou. Quieto. Até que o despertaram para a partida.
Agora nem a dureza dos bancos nem a grande algazarra dos homens um pouco bebidos, o abstraiam dos seus pensamentos.

Enrolados que estavam estes em torrentes caudalosas de uma ternura sem fim.
Como estava bonita a noite.
Amena. E o céu coberto de brilhantes estrelas.

(António Claudino)

domingo, 20 de janeiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

(Inicio hoje a publicação que espero semanal, talvez a cada domingo, de uns contos, uns de produção própria e outros que um amigo me fez chegar. É dele este que se segue – ele assina como António Claudino -  e gosta de escrever, tal como eu. Pode ser que haja quem goste de o ler.)

Em memória do Pedro e do Gama, personagens presentes nestes contos de passagem

Conto I
A Praça

Continua linda, a Praça.
As mesmas cores, os mesmos cheiros.
Talvez se notem aqui ou ali alguns traços mais carregados do passar dos anos mas não mais que umas rugas descuidadas.
Num dos seus topos, em lugar bem cimeiro, encrostado numa das torres, continua desfasado o relógio da Igreja de St.º Antão, como que teimando a recusa em acertar-se com o tempo . No recanto junto à arcada  juntam-se em silenciada tertúlia homens que jogam à moeda. Ali perto, junto ao pilar maldito, interrompem-se  fingidos passos apressados para ler no “placard” os nomes dos que partem.
Os pombos que esvoaçam serão certamente outros, mas lá estão.
Há hoje mais agencias bancárias (sinal dos tempos) e as cores garridas das entradas das lojas dos chineses emprestam à Praça ligeiros toques de diferença.
Interrogo-me se continuarão as terças feiras iguais? Irei passar por cá, na próxima para confirmar.
Então, vendiam-se aqui, sem que aqui estivessem, porcos, ovelhas e vacas.
A fonte continua majestosa. Bebedouro de pombos, local de encontros desencontrados ao longo do dia. De manhã os velhos curvados e amparados nas bengalas, “bengalando” tudo e todos e  à noite os jovens ganhando forças para as noites longas.
É um local fresco.

E o som dos fios de água caindo no tanque trazem à memória outros cenários e outros tempos.


No topo oposto à Igreja de St.º Antão, no passeio que ladeia o tabuleiro central e defronte ao Banco de Portugal juntam-se, no final dos períodos de trabalho, homens e mulheres que tomam autocarros para os bairros periféricos.
Lembra-se que era ali que se despedia da Anabela. Quase sempre, um até logo.
Verifica que, tal como antes, continuam a afluir aqui, a esta praça, muitos homens e mulheres de outros países. Breves instantes depois, gravadas duas ou três fotos, partem em grupo Rua 5 de Outubro acima. À procura da Catedral e do Templo.
A praça é acima de tudo, espaço dos nativos.
Quantos amores e desamores, quantos negócios, quantos encontros e desencontros, quantos trocares de olhares melosos, quantas abordagens, solidões e carícias pagas, quanta tristeza e quanta alegria, por ali não se cruzaram?
E não se cruzam ainda?
E quantas lutas? Acrescenta ele.
A praça é também o espaço dos cravos, das festas de abril, das lutas de maio.
E quando centenas de reboques, apinhados de gente e festivamente decorados pelas mãos calosas de homens e mulheres por ali desfilavam parecendo percorrer os caminhos de um futuro que se projetava radiante?
Ainda se lembra ele de Anabela, num desses reboques enfeitado com arcos e balõezinhos precoces de S. João.
Pele morena sob chapéu de palha, lenço pioneiro ao pescoço.
Lembra-se de ela lhe ter acenado e sorrido.
Nesse dia, nesse 1.º de Maio grande, beberam cerveja e trocaram o primeiro beijo.
Os lábios de Anabela eram mais quentes que o quente dia daquele dia primeiro de Maio. E se estava quente este…
O que será feito dela?
Será possível já se terem cruzado ali na praça e não se terem reconhecido?
Isso não , de certeza que não, reconhecer-se-iam.
Aquele  doce e meigo olhar  não pode ter-se  alterado. Ele iria reconhecê-lo mesmo no meio de uma multidão, quanto mais entre as dezenas de pessoas que a esta hora cruzam a praça..
Casou, de certeza. Era uma mulher muito bonita.
Terá filhos?
Se teve um menino,  acredito que lhe chamou João.
Ou  será que nunca mais se terá lembrado de si?
Dirá: João, qual João? Ah…tenho agora uma vaga ideia.
Não pode ser. Lembra-se. Garantidamente que se lembra, serenando a inquietação..
Ele sempre se lembrou dela.

António Claudino

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Olá

 

Para esta ausência só há uma razão: não me apeteceu escrevinhar e ponto.

E o que vocês ficaram ralados…oh, se ficaram

Entretanto, li o que outros escrevinharam.

Convém que nos saibamos por no devido lugar. Escrever é para os escrevinhadores, a nós foi-nos atribuída a função de leitores.

Tal como aos pobres foi atribuída a função (por deus?) de pobres.

Pois se só leitores podemos ser o que temos a fazer é ler os outros.

Assim fiz. Li o que escreveram sobre pataniscas, cafés com e sem borras, as melhores torradas de sempre.

Li também que foram presos os dois homens suspeitos de terem morto o homem errado. Claro, se tivessem morto o homem certo…

Li, li, li e assim vos poupei. A me lerem.

Acompanhei a xicoespertice dos xicosespertos. Dos que inventam duodécimos para matar dois coelhos (não se poderá dizer um coelho e um portas?) de uma só cajadada: acabar com os subsídios e fazer escorregar melhor a brutalidade dos aumentos do IRS.

E outras chicoespertices de que já estamos enjoados.

Vi que trinta mil estão online solidários com um cão que mata uma criança (o cão não tem culpa, dizem) ao que respondo que de facto não tem, quem a tem são eles e outros que agem como eles (os solidários caninos).

Também li,algures, que um homem de 53 anos morreu de hepatite ``a espera de um medicamento, que dizem os democratas cristãos e afins que é caro!

E nem uma assinatura de denúncia.

E noticiaram também que quase um milhão saiu às ruas de Paris a protestaram contra o casamento dos outros (são outros não são?) e pergunto-me o que é estes têm a ver com a vida dos outros.

Entretanto parece que o asteroide é maior do que se pensava e que vem por aí ao nosso encontro….

Por aqui, penso voltar a escrever… mas vou mudar de vida.

Arre.