domingo, 24 de março de 2013

Uma tempestade

Conto X

Havia perguntado ao Frazão como fazer para ir para os Baldios.
Simples, respondeu-lhe este, apanhas a camioneta para S. Cristóvão e desces-te nos Baldios.
É assim tão simples?!.
Sim. Claro que os Baldios não estão ali especados ao rés da estrada à tua espera. Tens que andar um bocadinho…
Nunca lá havia ido. Ia para uma reunião com o colectivo de jovens comunistas na UCP, que estava agendada para as oito da noite.
Um colectivo aguerrido e numeroso. Não podia falhar ou sequer ser tentado a adiar.
E se é assim tão simples, não tinha com que se preocupar.
Claro que estaria mais descansado se o raio da motorizada não tivesse avariado. Mas estaria lá.
Porque a noite se aproximava e o dia estava escuro, pediu ao revisor que o avisasse quando fosse a paragem para os Baldios.
A viagem entre Montemor e a paragem foi rápida. Avisado atempadamente pelo revisor, tocou a campainha e o grande e desengonçado autocarro parou ali no meio do nada.
Ouviu o ranger de ferros à mistura com o ronco do motor e eis que parte o autocarro rumo a S. Cristóvão.
Levava poucos passageiros. Reparou no ar de curiosidade de alguns deles olhando-o das janelas quando se reiniciava a marcha. Como que a perguntarem-se: o que fará aqui este franzino num dia como o de hoje.
Já sozinho, completamente sozinho, no meio do nada, apercebeu-se agora com maior nitidez que a tempestade estava para breve. Escurecia rapidamente e a noite antecipava-se.
O Frazão disse que era perto.
À sua frente a estrada e um campo vazio. Nem um arbusto, um simples carrasco que fosse,  conseguia avistar em todo o plano que avistava.
Uma estrada de terra batida, nada mais. O caminho só podia ser em frente. O Frazão explicou que ficava à direita, pois só podia  ser assim.
A estrada era ladeada  por uma linha telefónica. Os postes que a suportavam eram as únicas coisas que emergiam acima da terra. E agora, ele.
É em momentos assim que nos sentimos pequenos.
A terra imensa, plana, a perder de vista.
O céu, enorme, escuro como breu, assustador. Ao longe já se viam relâmpagos.
O caminho já o havia iniciado há uns bons minutos. Quantos? O Frazão havia-lhe dito que era perto. Estranha não avistar ainda o casario.
A carga, não é grande. A sua velha pasta na mão direita. Na esquerda, um saco de plástico com os «juventudes». Trinta, era a venda mensal habitual ali. Já pesava. Trocou a carga de mãos.
E caminhou. Sentiu um pingo frio na cara. O seu velho hábito de não gostar de guarda chuvas se calhar ia sair-lhe caro. Logo outro pingo e depois outro.
Começou a chover. São só uns borrifos pensou. Vou chegar aos Baldios antes do temporal.
Os borrifos passaram a pingos grossos. A tempestade chegou antes a ele que ele chegou aos Baldios.
O ribombar dos trovões era cada vez mais intenso. Os relâmpagos cada vez mais perto  iluminavam os campos já escuros.
O vento estava de frente. Rasteiro e cada vez mais forte.
Dobrou o saco de forma a impedir que a chuva estragasse os jornais e colocou-o, junto a si, dentro do casaco. Fechou o fecho bem até cima. Sentia-se gordo, mas funcionava como bom aparo de vento e até de algum frio…
Caminhar era cada vez mais difícil. O vento cada vez mais forte.
A tempestade agora estava ali mesmo. Forte. Negra. Fria.
Andar era tarefa penosa. O vento de frente era tão forte, tão rasteiro que ele quase se arrastava. Os trovões já não se intervalavam, as faíscas eram quase permanentes. Reparou, por mais de uma vez, que as linhas de telefone, eram percurso  de curiosas e assustadoras descargas eléctricas, dando lugar a uma espécie de fogo de artifício, de cor azulada.
Se houvesse uma árvore. Só um arbustozinho que fosse, teria cedido, mas assim não podia.
Tinha que continuar.
Os bagos de chuva grossa, eram agora granizo. Projetado pela força do vento provocava-lhe dores, parecia estar a ser apedrejado. Protegia a cara como podia, com as golas e encolhia as mãos para dentro das mangas.
No meio daquele ensurdecedor barulho, pareceu-lhe ouvir o ladrar de um cão.
Outro viajante desprevenido, pensou. Mas não via cão nenhum. Aliás não via nada, por força do negro da escuridão e do efeito de encadeamento das faíscas.
Mas voltou a ouvir ladrar.
E depois ouviu alguém gritar: «vai ajudar, homem do diabo, que aquele pobre desgraçado deve estar a cair para o lado, não tarda».
Não se apercebeu, mas havia chegado aos Baldios.
Ajudado entrou em casa. Sentaram-no junto à lareira. Foram buscar uma toalha com que enxugou a cabeça.
Na casa onde foi acolhido, estava um casal de meia idade. Trabalhadores da UCP, disseram-lhe
Minimamente retemperado, apresentou-se e disse ao que ia.
Pois..na dava pra perceber o que é que andava a fazer por estas paragens num dia como o de hoje…disse-lhe o homem.
Mas olhe que não há reunião, disse-lhe a mulher. O meu sobrinho é que estava a organizar isso, mas por causa da borrasca, nem de trator se consegue passar para o Monte da Chaminé que era para onde eles estavam a organizar. Aqueça-se, que quando isto amainar eu já o chamo que ele mora aqui ao lado e ele depois explica.
Amainada a tempestade, chegou o sobrinho, o Zé Francisco que confirmou a anulação da reunião. É que sabes camarada, a gente somos alguns trinta e só temos condições de nos reunirmos no Monte da Chaminé e por causa da trovoada não conseguimos passar, vai uma enxurrada danada no ribeiro…nem de trator. Eu tentei telefonar para avisar, mas não consegui, o telefone não dava nada.
Que horas são, perguntou?
Oito.
Da paragem da camioneta até aqui, quantos quilómetros são? Interrogou de novo.
Cinco quilómetros bem medidinhos, respondeu-lhe o Zé Francisco.
Olha, naquele saco estão os «juventudes» se calhar estão também a precisar de uma secagenzita…
Hoje ficas aqui connosco, disse-lhe o homem. Amanhã o jeep da cooperativa vai a Montemor e leva-te.
Jantou com eles sopa de couves com toucinho.
Tão quentinhas.
Tão boas.

António Claudino

Um conto em homenagem ao Pedro e ao Gama

domingo, 17 de março de 2013

Noite agitada

Porque é domingo,eis mais um conto. O Conto nono.

Sempre tendo presente a memória de Pedro e do Gama

 

Conto IX

Olhava para os escombros e ainda não queria acreditar.
Há poucas horas - muito poucas - havia ali estado, de guarda.
Os mais velhos, procuraram aliviar a tensão. Um deles atirou-lhe: «Tal não foi a tremedeira? Hein? Foi tanta, que esta merda não resistiu».
Durante a noite, ele e vários outros camaradas da terra haviam montado postos de vigilância em vários pontos da aldeia.
Ainda há pouco se tinham aberto as portas da liberdade e já a sacanagem do antes, punha os dentes e as patas de fora. Assaltos a centros de trabalho do PCP e de Sindicatos, agressões e emboscadas a camaradas, searas incendiadas. Tudo à boa maneira fascista, cujos hábitos não tinham perdido.
E era face a esta onda reacionária que naquele verão se mobilizavam os comunistas e outros democratas.
E assim fizeram os de Lavre, naquela e noutras noites.
Munidos de caçadeiras, montaram guarda. Ao centro de trabalho do PCP, à sede da UCP, a searas e pilhas de cortiça, às entradas da aldeia.
Combinaram entre si sinais. Em caso de gravidade disparava-se e todos os outros sabiam que tinham de acorrer ao local do disparo.
Da parafernália constava, para além da já referida caçadeira, um  agasalho para a noite - sabemos todos quanto são frescas algumas das madrugadas de verão -, algum pão, navalha, linguiça ou um queijo, uma garrafinha - daquelas da cerveja sagres - de tinto e alguns, acrescentavam, um bagacinho daqueles de fazer cair os dentes.
Nestes pequenos núcleos de guardiães da revolução as mulheres não entravam. Nem tal seria pensável. Muitas delas não sabiam sequer ao que iam os maridos ou os filhos. Segredos revolucionários guardados em masculino.
Convém ter presente que a Revolução era ainda uma criança e para mais uma criança já tão mal tratada.
Aos poucos, o discurso e depois algumas práticas de igualdade, passariam a fazer parte das preocupações, mas por enquanto, os redutos são masculinos.
Naquela noite, na noite que dá origem a esta narrativa, já tinha acontecido um episódio rocambolesco.
O José Pedro, dado a alguns excessos no uso dos álcoois, abusou do bagaço e o corpo ressentiu-se. No adro da Igreja de S. Sebastião - um ponto altaneiro numa das entradas da aldeia - lugar que lhe havia cabido na distribuição das posições, enroscou o agasalho e tendo-o como travesseiro, rendeu-se às pressões etílicas e ferrou o galho.
Acordou destrambelhado e  ainda hoje sem se saber como, na ânsia de retomar o posto  e o estado de vigília,  quando procurava empunhar a caçadeira, esta dispara-se  e dá sequência a toda uma grande confusão.
Conforme combinado, todos os outros acorreram à Igreja de S. Sebastião. Alguns, para marcar logo posição, desatam também aos tiros.
Àquela hora, quatro e meia, cinco horas, tal tiroteio criou o pânico e quase todos saíram das suas casas, uns de arma também em punho, outros armados de cajados, outros com o que tinham, roçadoras, marretas.
Demorou bem mais de uma hora até a situação estar completamente esclarecida.
Muitas mulheres tiveram então oportunidade para saber das razões das ausências de maridos e filhos.
Amanhecia e era garantido que a maioria dos que haviam saído abruptamente das suas casas, já não iam voltar à cama. O dia de trabalho estavas prestes a iniciar-se.
Mas eis que de novo se instala a confusão. Um barulho seco e estrondoso ecoou vindo dos lados da Praça.
«Há cabrões,  que nos apanharam distraídos e rebentaram com a sede do PCP» gritou alguém.
Nova correria. Novo tiroteio.
Chegados à Praça, esbaforidos, depararam com um monte de entulho e uma grande nuvem de poeira.
Demoraram-se alguns momentos até se conseguir ter uma percepção do que havia ali acontecido.
De novo serenados os ânimos, ficou claro para todos o que ali havia ocorrido.
As ruínas do prédio fronteiro à sede - o sitio que até há pouco havia servido de posto de guarda do João - o gaiato da Juventude, como era tratado - haviam desmoronado como um castelo de cartas.
Há anos que se encontrava ali aquela ruína.
Tinha pouco mais que as paredes laterais. O «miolo» já há muito havia caído.
Aquelas ruínas tinham uma  posição estratégica para servir de posto de guarda à sede do PCP.
Em tempos haviam sido um prédio de 1.º andar.
Conservara parte das escadas que então davam acesso ao piso superior e que agora permitiam chegar a uma das janelas, junto à qual existia uma pequena plataforma.
Nessa plataforma caberiam uma, duas pessoas se esta se aconchegassem.
Tinha sido precisamente aí que o João se havia instalado. Nessa plataforma junto à janela.
«Ficou lá a minha bucha» lamentava-se, «a garrafinha ainda estava meia e a navalha era nova, tinha-me saído numa rifa».
Deixa-te de lamechices disse-lhe um dos companheiros de milícia.
Tens razão, também a porcaria da linguiça até já tinha um gostinho a ranço.
E ala, que vai começar mais um dia de trabalho.
E de luta, disse o João por entre bocejos.

António Claudino

segunda-feira, 11 de março de 2013

Ode Mira

(ligeiramente atrasado…mas já explicado. Minimamente…)

Conto VIII


Uma vez mais havia fugido ao cumprimento das regras.
Era tão useiro esse seu comportamento como useira era a obstinação que punha no cumprimento de tarefas. Uma contradição em pessoa, como dizia a Cristina. Não lhe dissessem como, dissessem-lhe o quê e ele cumpriria.
Tinha uma reunião marcada, para apresentação, em Odemira, na sexta-feira. Para lá chegar só tinha  que apanhar  a camioneta que partia de Beja na tarde de quinta, pois esta chegava já noite a Odemira, bem depois da hora marcada para a reunião de apresentação.
Ele tomou de facto essa camioneta e partilhou a viagem até Aljustrel com o camarada que acompanhava esse concelho. Durante a viagem este falou-lhe da terra, do património de lutas, dos mineiros e das suas lutas e dos seus cantes.
Foi sentido em crescendo um apelo vindo dali.
E ele desceu em Aljustrel e disse: fico aqui contigo hoje, quero conhecer esta terra. Amanhã estarei em Odemira.
-Mas olha que não tens camioneta para lá estares a horas.
Não te preocupes. Lá estarei.
E nessa noite, percorreu a terra, entrou em tabernas, bebeu vinho e foi apresentado aos camaradas.
E ficou estarrecido com o som do cante que percorria as ruas e que saía das tabernas, cantado por grupos de homens naquele fim de tarde.
E ouviu as histórias das lutas e dos sofrimentos dos homens das minas.
Histórias com padrões idênticos às histórias de outras lutas que já conhecia doutros pontos deste Alentejo, mas que ali tinham particularidades que desconhecia.
E porque o interior da terra, as suas entranhas, era um cenário que se lhe apresentava como terrível, ele ouvia e imaginava a coragem necessária a esta gente.
No dia seguinte, bem cedo, fez-se à boleia. Não foi fácil. Mas apanhou boleia numa camioneta de distribuição de cerveja cujo motorista lhe pôs como condição que se descesse antes de chegar à vila: - sabes, não posso dar boleias, por isso vais ter de te descer um pouco antes de Odemira, não vá eu ter problemas - eu aviso-te quando for.
Largos tempos depois de um caminho sinuoso: É aqui - tens de te descer.
Agradeceu e fez-se ao resto do caminho - a pé. Dali já se avistava a vila, mas o raio das curvas da estrada, pareciam afastá-la.
Mais tarde do que havia imaginado quando se desceu da camioneta da cerveja, chegou a Odemira. Exausto (a noite tinha sido curta e o vinho tinha sido comprido).
Entrou num café e perguntou onde era a Câmara - tinham-lhe dito que o Centro de Trabalho era próximo da Câmara - e ficou a saber que ainda tinha que dar às sapatilhas, ainda era longe e quando no Alentejo ainda é longe…
Eram para aí umas duas da tarde e estava a chegar ao pé da Câmara. Tinha fome, mas não tinha dinheiro. O Centro de Trabalho era logo ali - estava fechado - e a loja de oculista, cujo proprietário lhe tinham dito, ter a chave, estava fechada. Teria que aguardar até às três da tarde, para que abrisse.
Vaguearam, ele e o apetite que o acompanhava, por ali. Sentiu que umas velhotas trocavam segredinhos à sua passagem amiúde. É normal. Estava habituado. Tinha feito tanta vez de estranho.
E assim esperava pelas três horas da tarde, que a loja abrisse. E viu que ali era outro Alentejo,  horizonte mais recortado por montes altos, campos mais verdes, menos sobreiros e azinheiras e um rio. Um rio já a sério que ele avistava circundando a vila e que ele sabia que se despedia do Alentejo ali para os lados de Mil Fontes.
Desceu até à sua margem. Junto à ponte havia um pequeno jardim com mesas de pic nic.
Aí se quedou. Sentou-se numa das mesas e tirou da sacola «Os esteiros» a sua companhia de agora e que devorava com prazer.
Nem deu pela fome nem pelo tempo que correu.
Eram quase quatro da tarde quando se apercebeu. Nas mesas em volta tinham-se juntado grupos de velhotes. Numa das mesas jogava-se uma agitada suecada.
Subiu a rua íngreme e dirigia-se à loja de oculista quando reparou que o centro de trabalho já estava aberto.
Entrou e ouviu: «Deves ser o Fernando! Não era para teres vindo ontem à noite?».
Lá se explicou e o camarada entretanto apresentou-se. Era o Cristóvão, um dos funcionários do partido em serviço em Odemira.
Já comeste? Perguntou-lhe este.
Ontem. Respondeu.
Tens aí um resto de caldeirada de sardinhas que fiz para mim. Podes comer.
Quase sempre reservado, mas agora não se fez rogado.
E que boa estava a caldeirada.
Sabes, disse-lhe o Cristóvão. Aqui é um pouco o nosso quartel general para os concelhos de Odemira e Ourique. Estou aqui eu, que tenho parte do concelho de Odemira - que é muito grande como deves saber - e o concelho de Ourique e está também outro camarada, o Manuel Francisco.
E onde está ele agora?
Foi almoçar a um tasco de um camarada nosso. Chegámos aqui já por volta das três.
Eu faço a comida mas ele é fino, vai sempre comer ao tasco. Ainda lhe propus que eu cozinhava e ele lavava a loiça, mas não quis. Disse o Cristóvão quando verificava que o Manuel Francisco já entrava no centro de trabalho.
Não quero morrer intoxicado com as tuas comidas - gracejou. Já chegaste? Dirigindo-se ao Fernando.
Sim e já comi e a caldeirada estava muito boa.
Gaba-o.
Sentaram-se e os camaradas apresentaram-lhe em traços gerais os concelhos, os quadros mais destacados e aqueles a que poderia recorrer em caso de dificuldade, os meios de transporte possíveis, os apoios possíveis nas freguesias.
Aqui o problema maior são as distâncias e a profusão de localidades. Uma ou outra é-nos mais adversa, agora Ourique… aí tens que ter cuidados.
Ah e aqui não há aquela coisa da separação juventude, partido. Aqui, talvez por causa das distâncias estamos todos no mesmo barco…
Ou então talvez por causa do mar estar tão perto..arriscou.
Olha o gajo é dado a piadinhas, sim senhor. Brincou o Cristóvão.
Bem o resto vais te apercebendo com o tempo. Está aí uma motorizada, que de forma planeada usamos e podes usar também, é só combinarmos.
Logo, deves ter aí uns 5 ou 6 camaradas não julgues que isto é Pias ou Montemor…marcámos para as sete. Mas daqui a pouco vem aí o camarada Marques, o oculista que te devem ter falado, e que te queremos apresentar. Ele é um pouco como uma referencia do partido aqui em Odemira, todos o conhecem e respeitam - um comunista à maneira - se ganhares a confiança dele, tens ali um amigo.
O Marques tinha um ar austero e cara de poucos amigos, mas cedo deu para perceber que tinha um grande coração. Parecia conhecer todo o Alentejo e falava-lhe de camaradas de Montemor, de Avis, de Évora e queria saber deles e perguntava pela família e acima de tudo queria saber do seu empenho e militância comunista.
Tiveram que interromper a conversa que prometeram retomar depois. Eram sete horas e a reunião ia começar.
Quase como tinha previsto o Cristóvão. Compareceram quatro camaradas. A Rosa e a Francelina que trabalhavam no secretariado concelhio das ucp(s), o José António que trabalhava na Câmara Municipal e o Francisco que trabalhava num café, o café que ficava ao pé do rio, junto ao jardim onde tinha estado quando chegou.
Tive quase para me meter contigo, mas não tinha a certeza se serias tu, disse-lhe o Francisco, no final.
Entretanto, o Cristóvão que tinha ido a S. Luis falar com um camarada, já regressara.
Se quiseres ensino-te a cozinhar vais ver que é uma aprendizagem fundamental para a sobrevivência. Queres aprender?
Claro.
Havia no centro de trabalho uma pequena cozinha e nela uma frigideira, um tacho, uma panela, alguns talheres e copos. Fogão de um só bico e um velho e enferrujado frigorífico completavam o equipamento.
O Cristóvão assumia-se como o cozinheiro do quase nada. De quase nada fazia um pitéu.
Levando em linha de conta a caldeirada que havia comido à tarde, estava tentado em reconhecer-lhe o estatuto de artista. Ou seria da fome?
Pois agora vamos fazer sopa de cação para o jantar. Para começar vais aí ao quintal que é do camarada Marques e trazes uma boa mão cheia de coentros, deves saber o que são coentros, não és alentejano?!
Claro que sei.
Vá rápido. Não tragas salsa.
Rápido foi. Tão rápido que não trouxe os coentros.
Atão?!
Podias ter-me avisado do cão. Quase me abocanhou as nalgas.
Ah! O freitas. Ele tinha o cão à solta?!. Bastava esticares um dedo que ele até se agachava e metia-se na barraca de rabo entre as patas. Deixa estar que eu vou lá enfrentar aquela fera. O  freitas, pobre bicho, mais manso que as coisas mansas. Chi.
E assim foi, num ápice voltou com uma mão cheia de cheirosos coentros.
Não demorou muito a sopa a estar pronta. Foi ajudando, seguindo orientações: descasca cebola, pela dois dentes de alho, lava e corta os coentros.
Caldo espesso, fumegante, aromatizado, dois ovos escalfados, vertido sobre sopas de pão duro cortado finamente.
Saborosa. Muito saborosa e acompanhada com um tinto muito bem encorpado.
Um manjar de ricos, disse o Cristóvão.
Só não percebo porque é lhe chamaste sopa de cação. Só te vi pôr farinha e os ovos.
Ah. Pois foi. Esqueci-me de pôr o cação. Deixa estar, acho que de qualquer forma não tínhamos.

António Claudino

11 M

 

Por razões que não se incluem no uso que tenho como adquirido dar aos escritos do «espojinho» , não me foi possível dar continuidade «ao domingo» da publicação dos contos que o meu amigo António Claudino me tem feito chegar.
Como sabem, já publiquei - se a memória não me atraiçoa - sete contos. Sete pequenas estórias de pequenos acontecimentos que ganharam grandes dimensões na vida dos seus personagens.
Obviamente que os contos são ficção. Mas uma ficção onde o António Claudino coloca personagens  que agem num tempo em que muitos de nós fomos atores.
E por essa razão a razão para que eles se constituam como uma homenagem ao Pedro e ao Gama.
Atores desse tempo que marca o tempo de hoje.
E é desse tempo a primeira referencia a um 11 M.
11 M esse, que repôs Abril no caminhos de Abril.
Um 11 M, esse, do longínquo colorido, vibrante e esperançoso 75 (o vilipendiado).

E como negação desse…
Um  11 M, com M para escrever medo. Com que também se escreveu  morte.
M, com que não se escreve cobardia mas que foi com ela que mancharam vidas e Madrid.

Um outro 11 M  longínquo  este nas coordenadas, mas próximo,  na partilha da dor.
Uma conjugação da natureza e de erros do homem.
E uma tragédia que recordamos.

Mas  11 M, também pode e deve ser  afirmação de esperança.
Que assim seja então.

11 M = Esperança.

quarta-feira, 6 de março de 2013

OS AMIGOS

 

Há situações assim. Sentir-mo-nos como amigos de alguém com quem nunca nos cruzámos, com quem nunca tomámos um café, a quem nunca demos um abraço.
A quem dedicamos a mesma atenção e a mesma ternura e por quem sofremos quando sofrem.
Como se faz com os amigos. Àqueles que vêm desde os tempos de escola, aos outros mais recentes, de amizades feitas nas lutas e em outras  caminhadas.
Agora, perdemos um amigo. Daqueles com que nunca nos cruzámos.
Um amigo porque quem  já havíamos intercedido (se cada um de nós fizesse o que pode …) quando os esbirros de sempre o puseram na cadeia (e só não foram mais longe porque os tempos…), quando  lhe chamavam ditador (ele que para além de amado era sufragado) e de quem, as noticias dos últimos tempos sobre o seu estado de saúde nos atormentavam .
Um amigo que acabou  por sucumbir e partir.
Um amigo a quem agora dizemos adeus.
E a quem, queremos acreditar, o seu povo lhe prestará a homenagem que mais desejaria.
Manter viva a chama da Revolução.
Adeus Hugo Chavez.
Viva a Revolução.

domingo, 3 de março de 2013

Lembras-te de como estava frio aquele Novembro?

Conto VII

Lembras-te de como estava frio aquele Novembro?

Porque é domingo. Publico mais um conto do meu amigo.

(Porque essa é a razão da sua existência, relembro aquilo que os que os têm lido não esquecem. Com estes escritos pretendemos lembrar e homenagear dois dos que deles são parte integrante: O Pedro e o Gama.

E tendo acontecido ontem o gigantesco grito de revolta de um povo que não suporta mais tirania, vem-me à memória que os tempos de hoje são o reflexo e o aprofundar daquele caminho de negação de esperança iniciado naquele frio novembro.)


O Antunes, a meio da manhã, percorria as ruas da aldeia apitando freneticamente a buzina do seu velho mini.
O Antunes era dali, mas ia todos os dias trabalhar para a fábrica dos automóveis em Vendas Novas. Era comunista e membro da comissão de trabalhadores da fábrica.
Entreabria a porta e erguendo-se gritava: «Temos que defender a revolução, vamos todos barricar a estrada» e repetia, repetia e as pessoas foram-se agitando e aproximando. Naqueles tempos era assim, as pessoas estavam muito atentas e ainda por cima, as coisas andavam muito agitadas.
Os senhores de sempre não se habituavam a que a «populaça» andasse agora de cabeça erguida e que não  tirasse o chapéu à sua passagem e esperneavam para destruir o sonho que o povo vivia.
Alguns generais tratavam da logística…
Por ali, os lacaios de sempre, começavam também a dar sinais de vida  e como répteis em fim de hibernação, espreitavam oportunidades.
Na sede da UCP decorria uma reunião geral dos trabalhadores  interrompida e logo transferida para as bermas da estrada que mais tarde acabou por ser cortada com uns bidões e umas varas que funcionavam como uma baias.
Por ali não passariam as armas com que queriam derrotar a Revolução. Tudo era revistado. Comentava-se que em Coruche, os camaradas tinham acabado de descobrir que um suposto funeral mais não era que uma tentativa de fazer passar dentro do caixão, um conjunto de metralhadoras. Por isso tudo se revistava, mas tudo mesmo.
Um senhorzinho da terra, por razões que vão lá saber-se, passou várias vezes pela barricada. Em todas foi revistado, ele e o carro. «Mas eu sou aqui da terra… vocês conhecem-me» implorava. Precisamente por isso, responderam-lhe
Era segunda-feira e estávamos a 24 de Novembro de 1975.
E frio, bem frio o dia.
Para aguentar as agruras havia uma fogueira e passava-se de mão em mão umas garrafinhas de bagaço caseiro.
Caiu a noite, o que em Novembro acontece cedo,  e não havia sinais de desmobilização.
Umas linguiças assadas em espetos improvisados, uns queijinhos e pão foram a ceia colectiva partilhada.
Estavam ali desde manhã cedo e decididos a continuar.
O João, bem miúdo ainda, tinha sucumbido aos efeitos do bagaço e enrolou-se numas mantas na valeta da estrada junto à enorme fogueira.
Estava assim menos frio e adormeceu.
Não sei como é que o gaiato consegue dormir nestas condições. Bateu-lhe forte o bagaço. Comentava um.
A noite foi avançando  entremeando-se entre umas anedotas e conversas preocupadas, agravadas pelas noticias que iam chegando.
O tráfego era pouco. De vez em quando um carro. Um lamento - caramba acabei de ser revistado em Montemor - ou uma palavra de alento - força camaradas.
Ainda tardavam as luzes da manhã, quando do lado de Vendas Novas surgiu a toda a velocidade um carro que rodopiando e fazendo pião se imobilizou junto à fogueira.
Todos entraram em pânico. De dentro do carro, saiu esbaforido o Costa, um camarada conhecido de quase todos.
Ai sacana que já o matas-te! Berrou-lhe o João Ladeiras
Mais esbaforido ficou: «matei, matei quem?».
O gaiato, o João, que estava ali a dormir na valeta.
E a dormir continuava, com a roda da frente do lado direito do carro do Costa a palmo, palmo e meio da sua cabeça.
Porra, que cagaço.
Pois acordem-no que vamos levantar ferro. Temos de ir todos para Vendas Novas fazer uma grande barricada que impeça que os chaimites de Estremoz cheguem a Lisboa, gritava o Costa.
E assim se fez, uns de carro, aos sete e oito em cada um, outros de motoreta, outros na caixa de carga da camioneta da ucp e fizeram-se à estrada.
Chegaram a Vendas Novas ainda não amanhecera.
Na estrada, junto ao Quartel, largas centenas barricavam por completo a passagem. Os chaimites para chegarem a Lisboa teriam que passar por ali e por ali não passariam,  asseguravam. 
Um soldado dali, todo desbarrigado e com claros sinais de embriaguez afiançava: «Só que houvesse ali (e apontava para o quartel) mais dois ou três como eu e nem precisávamos de estar aqui barricados, varríamos-los da face da terra. Temos ali armas bem capazes disso…
Dos lados de Montemor aproxima-se uma viatura, com potentes luzes, mas a baixa velocidade. Aproximou-se e deu para perceber que as potentes luzes eram de um holofote com que agora varria com o seu feixe a multidão, como que a fazer o reconhecimento. Alguns metros antes da barricada parou. Vimos que um corpo se ergueu e munido de megafone, berrou: Têm dois minutos para desimpedir a passagem. Fez rápida inversão e voltou para de onde veio.
A multidão gritava. Aqui não passarão.
Decorrido algum tempo que para os barricados parecia uma eternidade, avista-se ao longe de novo a tal luz de há pouco.
Só que desta vez a muito maior velocidade e ouve-se um som estridente. O som do atrito provocado pelos rodados dos carros de combate no asfalto.
Ficou perceptível para todos os que ali estavam que não tinham a menor intenção de parar. Quanto mais se aproximavam, mais aceleravam.
O Jeep que encabeçava o desfile, cedeu já próximo, o lugar de comando a um dos carros de combate. Ficaram aí claras as intenções sanguinárias.
E quando já mais nada havia a fazer a multidão abriu alas e a coluna seguiu a alta velocidade para Lisboa.
Gritos, assobios, protestos, uma ou outra pedra atirada. Impotência.
Muitos sentiram ali o desmoronar dos seus breves sonhos.
João ainda estava atónito.
O regresso foi a pé. Ele e mais alguns.
Na confusão da desmobilização, os transportes não chegaram para todos.
E fizeram-se à estrada. Sem vontade de conversas. Quase em silêncio.
Três longas e penosas horas.
À chegada, só os familiares. Aflitos. Haviam-lhe dito que tinham sido presos.
Que tinham ido para Caxias.
Aqueles dias frios e tristes de Novembro anunciavam trazer de novo as trevas consigo.

António Claudino