Remeto-me cada vez mais ao interior de mim.
Resultado degenerativo próprio ao passar dos anos, sintomas de perturbação, refinamento de carácter? Não sei.
E esse recolhimento expressa-se em vários traços do meu comportamento.
Por exemplo, não gosto de discursos. De quase nenhum discurso.
Fujo, sempre que posso, das maçadoras reuniões, cenários por excelência onde se desfilam vaidades.
Apresento traços patológicos de uma total alergia à hipocrisia.
Fico fora de mim, quando oiço, reoiço e torno a ouvir os bajulamentos diários, tipo: ai o chefe hoje vem…mal disposto, não achas?
Cumprimento de forma recatada.
Evito os beijinhos e apertos de mão da praxe.
Tenho isso sim, saudades de abraços sentidos…
Mantenho, assim julgo, apesar de tudo, um traço, direi um tracinho, que acalenta em mim a esperança de não ser um caso já perdido.
Continuo a achar que posso ajudar a mudar o mundo para melhor.
Ui.
Irritam-me, profundamente, os que querem evitar ou mesmo impedir-me de continuar assim.
Se afirmo que depois da canalhice dos gajos do pingo doce – daquele soberbo atestado de menoridade cívica que aqueles passaram a todos os que foram amalgamados contra as prateleiras – retomo, se afirmo, que nunca mais entrei numa lojeca deles, logo me dizem que tal atitude não muda nada e que todos os outros são iguais.
Sim, todos os outros são iguais, assim como iguais são todos os que encontraram as mais diversas desculpas, para agir como os outros.
Aqui ressalvo com respeito, aqueles outros, as vitimas mais vitimizadas, os que perante a propaganda nela viram uma oportunidade para pôr na mesa comida para os filhos no dobro dos dias em que o podiam fazer ou que pensaram ser assim possível acrescentar jantar ao almoço em alguns dias.
Mas sabemos que não foram só estes ou até sabemos mesmo que estes foram a minoria.
A maioria foi lá por ganância.
Há dias, há poucos dias, fomos confrontados com notícias de mais tragédias sobre o povo do Bangladesh – mortos que não mereceram a atenção que outros mortos mereceram, porque em matéria de mortos, é tal e qual como nos vivos, há mortos e mortos – e ficámos também a saber que debaixo dos escombros, ficaram as mulheres que costuravam os trapinhos modernos que as mulheres modernas compram em modernas lojas das modernas cidades da moderna europa e américa.
Aguardo as manifestações de solidariedade e uma palavra de respeito para com as vítimas.
Estou mesmo tentado em sentar-me à entrada de uma dessas lojas procurando anotar os comentários e estou seguro que ouvirei, pelo menos uma vez: este top é bonito, será que a coitada da mulher que o fez foi uma das vitimas?
Ui.
Mas, ouvirei decerto: o que é que queres? em algum lado têm de ser feitos e nós precisamos de os comprar, que diferença faz?
Faz a diferença entre o agir responsavelmente e a inatividade irresponsável.
Direi eu.
Mas eu, sou aquele que está a ficar irrascível.
Que apresenta traços de demência.
Aquele que tem de se convencer que não é possível mudar o mundo.
O que tem de ter juízo porque com idade isso já era para ter passado.
Não. Não passou?
É preocupante?
O que devo fazer?
Ver televisão? Estar atento para ver quem vai para a cama com quem em programas que me contam estarem na berra?
Bolas, não exageres! Dir-me-ão.
Tens os livros. O cinema. A música.
Podes ir à apresentação pública de…ao colóquio sobre…tal dia.
Há agora na cidade espaços alternativos. Onde se ouvem os poetas e se fala de escritores.
Sabes que a cultura também é resistência. Estás a ver. A cultura.
E ficarás a saber de escritores que escrevem melodiosamente sobre o povo e que assumem que não se importam de ver os seus livros junto dos rabanetes do super e que apelam à libertação dos sentidos…
Que sentidos libertarão os que optam pelos rabanetes porque não podem levar o livro?
E ficarás a saber que alguns dizem, que são tão, tão do povo que até comem sem garfo.
Eu que mantenho a mania de até sardinhas comer de garfo e faca…
Mas atenção, para os meus nós e para que conste, declaro que prefiro estes aos outros …até porque com os outros não perco tempo.
Não me peçam para endeusar autores. Para os usar citando ou afirmando citar a propósito e a despropósito.
Gosto ou não das suas obras. Posso ou não gostar dos autores.
O tempo, que ultimamente, reconheço, como pouco, que dedico à literatura, continuo burramente a concentrá-lo nas obras.
Respeito e não desassocio , mas não endeuso autores.
Declaro agora, quase em jeito de nota de após conversa, que para além de não saber cantar – onde já se viu um alentejano sem saber cantar? – acrescento-lhe ainda o defeito de não ter sotaque.
Sabemos.Fica sempre bem o sotaque.
Açoriano. Alentejano, não importa, o que importa é ter sotaque.
Pois eu, desgraçadamente, tenho sotaque de lado nenhum…
Eu…
Ui esta mania de continuar a ser eu.
Deves dizer SEMPRE nós.
NUNCA se deve utilizar a primeira pessoa do singular, já devia saber isto.
Pois…assim é mais fácil diluir no nós as ausências e erros do eu.
Direi eu.
Eu e o os meus nós.
Terei que tratar disto.