terça-feira, 27 de março de 2012

Notas para uma alegoria

 

Sabes, antes, no sítio onde vivi, pressentia que para lá da escuridão, havia luz.

E homens e mulheres que poderiam ser livres, algures.

Projetavam-se mesmo imagens dessa luz. Brilhante.

E escutava risos de alegria, estridentes, soltos.

Por vezes julgava ouvir o seu eco. Por muitas horas.

E lá, onde eu então vivia, sempre tudo tão escuro, tão húmido, tão triste.

Sussurravam-me por vezes, alguns, que sim, que esse sítio imaginado existia e que se ele existisse em cada um, um dia existiria mesmo. Era preciso querer e acreditar.

Mas lá do fundo da escuridão, logo apareciam uns brutos, que diziam que não...que era tudo mentira. Doentia imaginação.

E faziam com que tudo ainda ficasse mais escuro,mais húmido, mais triste.

Passado uns tempos, mais sussurros de liberdade.

E eram cada vez mais os que sussurravam e os sussurros ganhavam som.

E aqueles do mais fundo da negridão, cada vez mais atarefados.

Lembro-me de ouvir um, que lá no fundo da sua escuridão, berrava que não, que esse mundo não existia.

E berrou dias a fio.

E um dia...

Essa luz sonhada, imaginada, invadiu o sítio onde eu vivia.

Calaram-se os berros dos que não queriam que conhecêssemos a luz e a cor.

E os berradores, passaram a cirandar por entre nós, escondendo-se aqui e ali. Adoravam a noite – mas só porque esta é escura e nada mais.

E por momentos, houve, para além da luz e da cor, alegria.

Nesses dias, não eram ecos, eram sons reais os que se escutavam, dos risos das crianças e das gentes.

Agora, neste sitio onde vivo.

Há luz e cor mas estas parecem-me cada vez mais pálidas.

Chego mesmo a duvidar se não se tratam de mero reflexos.

Ainda há risos...mas parecem-me cada vez mais ecoados.

De tanto cirandarem entre nós, nas sombras, as figuras da negridão, parecem cada vez mais partes da coisa, quando antes eram estranhos.

Não berram como berravam antes. Põem poses académicas e falam-nos das verdades eternas.

Já não nos negam a luz e deixam-nos deliciar com os seus focos (só isso) a que chamam utopias.

Antes, na caverna onde vivia, não havia luz, nem cor, nem alegria.

E havia resistência, coragem, solidariedade e persistência.

Hoje, é verdade que chegam feixes até nós. Alguma cor, alguma luz.

Mas prostramos-nos cada vez mais embalados pelo discurso do fim das utopias.

Deixem-nos sonhar, mas não os deixam acordar e muito menos, viver os sonhos, escuta-se cinicamente, vindo das sombras.

Temo esta escuridão, quase tanto quanto temia a outra.

quinta-feira, 15 de março de 2012

OUI, NOS POUVONS

 

Just vouloir

Já que tanto prezamos estrangeirismos, pelo menos rendo-me em francês...

Hoje participei numa ação de rua com os meus companheiros de trabalho (alguns). As razões são as conhecidas: destruição de direitos, baixos salários, desprezo por quem trabalha.

Juntámos-nos numa praça, fingimos escutar atentamente o longo discurso de sempre, trocámos opiniões, acrescentámos lamentos aos lamentos e interrogámos-nos sobre as saídas possíveis.

Um de nós, pessimista, afirmou não acreditar em soluções e dizia: «e tantos... tantos de nós, sofremos...mas vamos a correr dar o nosso voto, ah o sócrates é que era um bandido, depois acreditei no passos, outro, mas agora o seguro, não tem nada a ver, é outra coisa...) ou por vezes: «eu é que já não vou em cantigas...são todos iguais».

Um de nós, o outro, dizia: «quando um dia acreditarmos, quando todos tomarmos consciência da nossa força, as soluções vão surgir».

E esta dual conversa entre quem se encontra a percorrer o mesmo caminho, empurrou os meus pensamentos para Rousseau e Hobbes, quando o primeiro considerava a bondade humana corrompida pela sociedade e o segundo que o homem é lobo do homem. Aviso desde já que não tomarei partido, mas se tivesse de o fazer, fá-lo-ia (se subordinado à escolha do pensamento dos dois) pelo filósofo «francês» nascido suíço.

Mas, quando é que o homem cordeiro, toma consciência de que a «sociedade» abusa dessa sua condição e que reforçando-a, faz dele um eterno apascentado, um joguete nas mãos dos pastores e seus cães?

Permitam-me ainda uma outra nota de reportagem – quando abandonava o plenário, ao passar por dois polícias ouvi de um deles: «vêm prá aqui queixar-se que não têm dinheiro e além ao fundo é só empinarem cervejas...».

Pois...talvez se julgue lobo, este agente da psp...mas não passa de mais um cordeiro.

Mas era verdade... lá ao fundo alguns bebiam cerveja... e era manhã...

Eram quatro ou cinco, mas o agente da psp entendeu por bem generalizar assente no exemplo deles...

Mas, quando é que os bebericam cerveja, os que ficaram nos gabinetes, os que olhavam das janelas, os envergonhados distantes, os que aproveitaram e não chegaram a lá pôr os pés, todos, todos os cordeiros deste imenso rebanho escravizado, tomam consciência de si e fazem aos pastores um enorme ...borrego, ou mais popularmente, um enorme manguito?

Não creio, mas desejava imenso que sim fosse já no próximo dia 22.

Por isso e agora em português (nesta língua partilhada por vários povos):

SIM, NÓS PODEMOS!

QUANDO QUIZERMOS!

sexta-feira, 9 de março de 2012

PASSARÕES

 

Num tempo não muito distante, quando os ventos de liberdade agitavam estas terras áridas, começaram a afluir aqui, espécimes de diverso tipo.

Quase todos jovens, formados ou em formação, entusiasmados e arautos incansáveis da Revolução, cuja boleia apanhavam.

Foram recebidos como sempre aqui se recebe, obedecendo à máxima: «seja bem vindo quem vier por bem. E eles vinham por bem. Diziam-no.

O Alentejo por natureza árido, estava então ainda mais árido. O latifúndio sufocava-o e o regime de suporte deste, encarcerava-o.

Os homens e mulheres entretanto livres do cárcere, recebiam de bom grado estas lufadas de gente com ideias frescas. Novos companheiros (assim julgavam) para a luta que sabiam ter de continuar.

E comeram açordas juntos e sentaram-nos às suas mesas. Beberem vinho da talha por eles fermentado e procuraram ensinar-lhes o seu canto, arrastado e melodioso.

Carente de gente que tivesse tido a oportunidade de seguir estudos, chamou doutor a alunos que nem uma cadeira haviam feito ainda e engenheiro a técnicos agrícolas sem curso terminado na Paiã.

E aceitaram-nos no partido e confiaram-lhe cargos. Tratavam-nos por camaradas. E eles gostavam.

E os doutores e engenheiros cimentaram com argamassa de superioridade os caboucos de confiança com que haviam sido recebidos.

E incharam, incharam. E à primeira oportunidade, traíram.

Que ninguém agora ouse trata-los por camarada. Doutores e engenheiros e não menos do que isso, mesmo que nada (do ponto de vista académico) tivessem acrescentado à situação de chegada.

E que bem que estes passarões se adaptam ao tempo e que bem que mudam de roupagem.

E mordem como cães raivosos nas memórias dos tempos onde se esforçam por apagar a sua presença.

Nem conseguem imaginar o quanto ficaríamos felizes se fossemos realmente capazes de apagar do tempo essas memórias.

Nem conseguem imaginar o asco que sentimos quando nos recordamos que um dia, estes passarões nos trataram por camaradas.

Nem conseguem imaginar o nojo que sentimos quando vimos agora um desses passarões a querer dar nomes de carcereiros a ruas de uma cidade de gente de luta pela liberdade e quando outros, pesquisando já novos caminhos para enfartar panças, falam do Alentejo como coisa sua e dizem querer fazer dele um Alentejo de excelência.

A excelência do Alentejo são as suas gentes.

Destes passarões nem os excrementos se aproveitam.

Aos outros. Aos que fizeram o percurso na vertical, um abraço fraterno camaradas.

quinta-feira, 1 de março de 2012

SOPAS DE CONVERSA

 

Sopa de conversa é um prato muito usado, rico de tradições e comum a quase todas as dietas. Na dieta mediterrânica – cinjo-me a esta por uma questão de familiaridade – consiste em juntar um conjunto de tecnocratas com gosto pelo uso profuso da fala, uma sala devidamente equipada para o efeito (data show, quadro, marcadores, ponteiro laser) e um pseudo mandato para ser ingrediente.

As técnicas de confecção vão variando conforme os tempos: trabalho de grupo, introdução das temáticas por «experts»; «focus group»; produção em grupo de análise «swot» (atenção ao termo em espanhol- ou deverei dizer castelhano?) e outras.

As sopas de conversa são muito frequentes na chamada área social e envolvem uma panóplia de instituições ligadas a serviços públicos e a outros, destes dependentes.

Há personagens frequentemente envolvidas.

São habitués e cultivaram uma paixão doentia por se fazerem ouvir. Não cuidam, nem por um momento, em procurar saber o que pensam deles, aqueles que o ouvem.

Não cuidam, nem sentem necessidade de o fazer. Eles são eloquentes, cultos, sabedores (contagiado uso já do mesmo), os outros são simplesmente: ouvintes.

Se alguém diz: é necessário que seja eficaz, logo um deles diz: «não basta» e acrescenta: é necessário antes que seja eficiente. Retorquindo um outro: Não basta que seja eficaz ou até mesmo eficiente, é necessário que seja pertinente.

E assim se vai confecionando a sopa.

Só há um pequeno senão.

É uma sopa ineficaz, ineficiente e impertinente.

Ineficaz porque os resultados obtidos ficam muito aquém dos objectivos apresentados.

Ineficiente porque os recursos empregues são excessivos para os resultados obtidos.

Impertinente, porque desapropriada.