Conto VII
Lembras-te de como estava frio aquele Novembro?
Porque é domingo. Publico mais um conto do meu amigo.
(Porque essa é a razão da sua existência, relembro aquilo que os que os têm lido não esquecem. Com estes escritos pretendemos lembrar e homenagear dois dos que deles são parte integrante: O Pedro e o Gama.
E tendo acontecido ontem o gigantesco grito de revolta de um povo que não suporta mais tirania, vem-me à memória que os tempos de hoje são o reflexo e o aprofundar daquele caminho de negação de esperança iniciado naquele frio novembro.)
O Antunes, a meio da manhã, percorria as ruas da aldeia apitando freneticamente a buzina do seu velho mini.
O Antunes era dali, mas ia todos os dias trabalhar para a fábrica dos automóveis em Vendas Novas. Era comunista e membro da comissão de trabalhadores da fábrica.
Entreabria a porta e erguendo-se gritava: «Temos que defender a revolução, vamos todos barricar a estrada» e repetia, repetia e as pessoas foram-se agitando e aproximando. Naqueles tempos era assim, as pessoas estavam muito atentas e ainda por cima, as coisas andavam muito agitadas.
Os senhores de sempre não se habituavam a que a «populaça» andasse agora de cabeça erguida e que não tirasse o chapéu à sua passagem e esperneavam para destruir o sonho que o povo vivia.
Alguns generais tratavam da logística…
Por ali, os lacaios de sempre, começavam também a dar sinais de vida e como répteis em fim de hibernação, espreitavam oportunidades.
Na sede da UCP decorria uma reunião geral dos trabalhadores interrompida e logo transferida para as bermas da estrada que mais tarde acabou por ser cortada com uns bidões e umas varas que funcionavam como uma baias.
Por ali não passariam as armas com que queriam derrotar a Revolução. Tudo era revistado. Comentava-se que em Coruche, os camaradas tinham acabado de descobrir que um suposto funeral mais não era que uma tentativa de fazer passar dentro do caixão, um conjunto de metralhadoras. Por isso tudo se revistava, mas tudo mesmo.
Um senhorzinho da terra, por razões que vão lá saber-se, passou várias vezes pela barricada. Em todas foi revistado, ele e o carro. «Mas eu sou aqui da terra… vocês conhecem-me» implorava. Precisamente por isso, responderam-lhe
Era segunda-feira e estávamos a 24 de Novembro de 1975.
E frio, bem frio o dia.
Para aguentar as agruras havia uma fogueira e passava-se de mão em mão umas garrafinhas de bagaço caseiro.
Caiu a noite, o que em Novembro acontece cedo, e não havia sinais de desmobilização.
Umas linguiças assadas em espetos improvisados, uns queijinhos e pão foram a ceia colectiva partilhada.
Estavam ali desde manhã cedo e decididos a continuar.
O João, bem miúdo ainda, tinha sucumbido aos efeitos do bagaço e enrolou-se numas mantas na valeta da estrada junto à enorme fogueira.
Estava assim menos frio e adormeceu.
Não sei como é que o gaiato consegue dormir nestas condições. Bateu-lhe forte o bagaço. Comentava um.
A noite foi avançando entremeando-se entre umas anedotas e conversas preocupadas, agravadas pelas noticias que iam chegando.
O tráfego era pouco. De vez em quando um carro. Um lamento - caramba acabei de ser revistado em Montemor - ou uma palavra de alento - força camaradas.
Ainda tardavam as luzes da manhã, quando do lado de Vendas Novas surgiu a toda a velocidade um carro que rodopiando e fazendo pião se imobilizou junto à fogueira.
Todos entraram em pânico. De dentro do carro, saiu esbaforido o Costa, um camarada conhecido de quase todos.
Ai sacana que já o matas-te! Berrou-lhe o João Ladeiras
Mais esbaforido ficou: «matei, matei quem?».
O gaiato, o João, que estava ali a dormir na valeta.
E a dormir continuava, com a roda da frente do lado direito do carro do Costa a palmo, palmo e meio da sua cabeça.
Porra, que cagaço.
Pois acordem-no que vamos levantar ferro. Temos de ir todos para Vendas Novas fazer uma grande barricada que impeça que os chaimites de Estremoz cheguem a Lisboa, gritava o Costa.
E assim se fez, uns de carro, aos sete e oito em cada um, outros de motoreta, outros na caixa de carga da camioneta da ucp e fizeram-se à estrada.
Chegaram a Vendas Novas ainda não amanhecera.
Na estrada, junto ao Quartel, largas centenas barricavam por completo a passagem. Os chaimites para chegarem a Lisboa teriam que passar por ali e por ali não passariam, asseguravam.
Um soldado dali, todo desbarrigado e com claros sinais de embriaguez afiançava: «Só que houvesse ali (e apontava para o quartel) mais dois ou três como eu e nem precisávamos de estar aqui barricados, varríamos-los da face da terra. Temos ali armas bem capazes disso…
Dos lados de Montemor aproxima-se uma viatura, com potentes luzes, mas a baixa velocidade. Aproximou-se e deu para perceber que as potentes luzes eram de um holofote com que agora varria com o seu feixe a multidão, como que a fazer o reconhecimento. Alguns metros antes da barricada parou. Vimos que um corpo se ergueu e munido de megafone, berrou: Têm dois minutos para desimpedir a passagem. Fez rápida inversão e voltou para de onde veio.
A multidão gritava. Aqui não passarão.
Decorrido algum tempo que para os barricados parecia uma eternidade, avista-se ao longe de novo a tal luz de há pouco.
Só que desta vez a muito maior velocidade e ouve-se um som estridente. O som do atrito provocado pelos rodados dos carros de combate no asfalto.
Ficou perceptível para todos os que ali estavam que não tinham a menor intenção de parar. Quanto mais se aproximavam, mais aceleravam.
O Jeep que encabeçava o desfile, cedeu já próximo, o lugar de comando a um dos carros de combate. Ficaram aí claras as intenções sanguinárias.
E quando já mais nada havia a fazer a multidão abriu alas e a coluna seguiu a alta velocidade para Lisboa.
Gritos, assobios, protestos, uma ou outra pedra atirada. Impotência.
Muitos sentiram ali o desmoronar dos seus breves sonhos.
João ainda estava atónito.
O regresso foi a pé. Ele e mais alguns.
Na confusão da desmobilização, os transportes não chegaram para todos.
E fizeram-se à estrada. Sem vontade de conversas. Quase em silêncio.
Três longas e penosas horas.
À chegada, só os familiares. Aflitos. Haviam-lhe dito que tinham sido presos.
Que tinham ido para Caxias.
Aqueles dias frios e tristes de Novembro anunciavam trazer de novo as trevas consigo.
António Claudino
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