Porque é domingo,eis mais um conto. O Conto nono.
Sempre tendo presente a memória de Pedro e do Gama
Conto IX
Olhava para os escombros e ainda não queria acreditar.
Há poucas horas - muito poucas - havia ali estado, de guarda.
Os mais velhos, procuraram aliviar a tensão. Um deles atirou-lhe: «Tal não foi a tremedeira? Hein? Foi tanta, que esta merda não resistiu».
Durante a noite, ele e vários outros camaradas da terra haviam montado postos de vigilância em vários pontos da aldeia.
Ainda há pouco se tinham aberto as portas da liberdade e já a sacanagem do antes, punha os dentes e as patas de fora. Assaltos a centros de trabalho do PCP e de Sindicatos, agressões e emboscadas a camaradas, searas incendiadas. Tudo à boa maneira fascista, cujos hábitos não tinham perdido.
E era face a esta onda reacionária que naquele verão se mobilizavam os comunistas e outros democratas.
E assim fizeram os de Lavre, naquela e noutras noites.
Munidos de caçadeiras, montaram guarda. Ao centro de trabalho do PCP, à sede da UCP, a searas e pilhas de cortiça, às entradas da aldeia.
Combinaram entre si sinais. Em caso de gravidade disparava-se e todos os outros sabiam que tinham de acorrer ao local do disparo.
Da parafernália constava, para além da já referida caçadeira, um agasalho para a noite - sabemos todos quanto são frescas algumas das madrugadas de verão -, algum pão, navalha, linguiça ou um queijo, uma garrafinha - daquelas da cerveja sagres - de tinto e alguns, acrescentavam, um bagacinho daqueles de fazer cair os dentes.
Nestes pequenos núcleos de guardiães da revolução as mulheres não entravam. Nem tal seria pensável. Muitas delas não sabiam sequer ao que iam os maridos ou os filhos. Segredos revolucionários guardados em masculino.
Convém ter presente que a Revolução era ainda uma criança e para mais uma criança já tão mal tratada.
Aos poucos, o discurso e depois algumas práticas de igualdade, passariam a fazer parte das preocupações, mas por enquanto, os redutos são masculinos.
Naquela noite, na noite que dá origem a esta narrativa, já tinha acontecido um episódio rocambolesco.
O José Pedro, dado a alguns excessos no uso dos álcoois, abusou do bagaço e o corpo ressentiu-se. No adro da Igreja de S. Sebastião - um ponto altaneiro numa das entradas da aldeia - lugar que lhe havia cabido na distribuição das posições, enroscou o agasalho e tendo-o como travesseiro, rendeu-se às pressões etílicas e ferrou o galho.
Acordou destrambelhado e ainda hoje sem se saber como, na ânsia de retomar o posto e o estado de vigília, quando procurava empunhar a caçadeira, esta dispara-se e dá sequência a toda uma grande confusão.
Conforme combinado, todos os outros acorreram à Igreja de S. Sebastião. Alguns, para marcar logo posição, desatam também aos tiros.
Àquela hora, quatro e meia, cinco horas, tal tiroteio criou o pânico e quase todos saíram das suas casas, uns de arma também em punho, outros armados de cajados, outros com o que tinham, roçadoras, marretas.
Demorou bem mais de uma hora até a situação estar completamente esclarecida.
Muitas mulheres tiveram então oportunidade para saber das razões das ausências de maridos e filhos.
Amanhecia e era garantido que a maioria dos que haviam saído abruptamente das suas casas, já não iam voltar à cama. O dia de trabalho estavas prestes a iniciar-se.
Mas eis que de novo se instala a confusão. Um barulho seco e estrondoso ecoou vindo dos lados da Praça.
«Há cabrões, que nos apanharam distraídos e rebentaram com a sede do PCP» gritou alguém.
Nova correria. Novo tiroteio.
Chegados à Praça, esbaforidos, depararam com um monte de entulho e uma grande nuvem de poeira.
Demoraram-se alguns momentos até se conseguir ter uma percepção do que havia ali acontecido.
De novo serenados os ânimos, ficou claro para todos o que ali havia ocorrido.
As ruínas do prédio fronteiro à sede - o sitio que até há pouco havia servido de posto de guarda do João - o gaiato da Juventude, como era tratado - haviam desmoronado como um castelo de cartas.
Há anos que se encontrava ali aquela ruína.
Tinha pouco mais que as paredes laterais. O «miolo» já há muito havia caído.
Aquelas ruínas tinham uma posição estratégica para servir de posto de guarda à sede do PCP.
Em tempos haviam sido um prédio de 1.º andar.
Conservara parte das escadas que então davam acesso ao piso superior e que agora permitiam chegar a uma das janelas, junto à qual existia uma pequena plataforma.
Nessa plataforma caberiam uma, duas pessoas se esta se aconchegassem.
Tinha sido precisamente aí que o João se havia instalado. Nessa plataforma junto à janela.
«Ficou lá a minha bucha» lamentava-se, «a garrafinha ainda estava meia e a navalha era nova, tinha-me saído numa rifa».
Deixa-te de lamechices disse-lhe um dos companheiros de milícia.
Tens razão, também a porcaria da linguiça até já tinha um gostinho a ranço.
E ala, que vai começar mais um dia de trabalho.
E de luta, disse o João por entre bocejos.
António Claudino
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