terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
O buraco da fechadura
Dando continuidade aos textos enigmáticos, quero hoje contar um conto.
Necessariamente um pequeno e sintetizado conto, que como quase todos, começa por: era uma vez…
Uma pequena aldeia deste Alentejo, estremenha (com o Ribatejo), mas genuinamente alentejana.
Estávamos no principio do Verão e já tinha começado a tirada da cortiça.
Para ali tinha vindo um rancho de homens, não porque a mão de obra fosse escassa, mas como represália pelas reivindicações salariais dos da terra.
Viviam em grupos nos casebres que ladeavam a rua do monte.
Quase invariavelmente, estes casebres, tinham uma divisão de entrada onde se situava uma enorme chaminé e uma divisão interior que servia de camarata. Eram todas ou quase, de terra batida.
Nesse monte, também moravam alguns nativos. Em casas já não de terra batida, mas não muito diferentes.
Era nestas que viviam o Zé Francisco e a sua mulher Francelina, Ele padeiro com padaria na vila próxima. O Tonho João que é guarda venatório da herdade e a sua mulher Zefa. O Carlos, boieiro, e a sua mulher Raquel - estes tinham um filho, já entradote, para aí com uns doze anitos, chamado de Rui. Muito curioso, o gaiato.
Ouvindo coisas levadas da breca em relação ao rancho de forasteiros, não poucas vezes, saía sorrateiramente de casa - aproveitando a distracção da mãe e a ausência do pai - e vá de espreitar pelos buracos das fechaduras, coscuvilhando os afazeres alheios.
E na sua senda coscuvilheira, tanto se centrava na vida dos forasteiros, como na dos seus próprios vizinhos conhecidos.
Foi assim que um dia estranhou ver na casa do padeiro, o Tonho João, o guarda venatório. Mas passou à frente. Nem contou, nem comentou. Para ele não havia nada a contar ou a comentar.
Numa dessas incursões, espreitando - pelo buraco da fechadura - e instigado pela curiosidade que lhe gerou a grande algazarra que vinha de um dos casebres que albergavam o rancho de forasteiros, assistiu a um jogo de empurrões e alguns murros, entre dois homens.
Alguns dos palavrões escutados, ele não os conhecia até então.
Pelo chão, já rolava um garrafão e era notório que já se empapavam aqui e acolá pequenas poças de vinho.
Se este não era a causa, tinha pelo menos culpa. Mas sabia-se que aqueles dois homens que estavam à luta, já tinham tido as suas porras por ali.
Já as traziam de longe, da terra de onde tinham vindo.
Já assustado, porque a violência era crescente, preparava-se para dar por terminada a bisbilhotice, quando viu que um dos homens, sacando de uma navalha a crava num ápice na garganta do outro. Reteve nitidamente a feição dos dois. O que sacou da navalha e daquele que, pálido e cheio de sangue acabava de se estatelar silenciosamente no chão.
Fugiu assustadamente para casa e só de lá saiu quando a rua do monte, já noite alta, se encheu de luzes dos jipes da guarda.
Reparou que, para dentro de um deles era empurrado, com as mãos presas atrás das costas, o Janeca, um dos homens do rancho de forasteiros, que era um pouco sonso, ou seja não era tido por certo.
Aproximou-se.
Viu e ouviu o Farfalha - o homem da navalha, dizer para a guarda: “Ele é um pouco tonto e às vezes a malta gozava-o e ele hoje não foi de medidas… sem ninguém esperar, por trás, espetou a navalha no Tonho Augusto”.
O Janeca já estava no Jipe. O guarda já fechara a porta e tudo parecia que, apesar do triste fim, se tinha encontrado rapidamente o seu fecho.
Quando tudo parecia acabado. O Rui, puxando pela aba do casaco de um dos Guardas - larga-me o casaco, o gaiato é maluco ou quê? - lhe disse: Não foi esse homem.
Não foi? Então quem foi?
Foi aquele e o Rui apontou para o Farfalha.
Como é que tu sabes?
Eu espreitei pelo buraco da fechadura e vi.
Não faço a mais pequena ideia do porquê de me ter lembrado desta estória.
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