domingo, 20 de janeiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

(Inicio hoje a publicação que espero semanal, talvez a cada domingo, de uns contos, uns de produção própria e outros que um amigo me fez chegar. É dele este que se segue – ele assina como António Claudino -  e gosta de escrever, tal como eu. Pode ser que haja quem goste de o ler.)

Em memória do Pedro e do Gama, personagens presentes nestes contos de passagem

Conto I
A Praça

Continua linda, a Praça.
As mesmas cores, os mesmos cheiros.
Talvez se notem aqui ou ali alguns traços mais carregados do passar dos anos mas não mais que umas rugas descuidadas.
Num dos seus topos, em lugar bem cimeiro, encrostado numa das torres, continua desfasado o relógio da Igreja de St.º Antão, como que teimando a recusa em acertar-se com o tempo . No recanto junto à arcada  juntam-se em silenciada tertúlia homens que jogam à moeda. Ali perto, junto ao pilar maldito, interrompem-se  fingidos passos apressados para ler no “placard” os nomes dos que partem.
Os pombos que esvoaçam serão certamente outros, mas lá estão.
Há hoje mais agencias bancárias (sinal dos tempos) e as cores garridas das entradas das lojas dos chineses emprestam à Praça ligeiros toques de diferença.
Interrogo-me se continuarão as terças feiras iguais? Irei passar por cá, na próxima para confirmar.
Então, vendiam-se aqui, sem que aqui estivessem, porcos, ovelhas e vacas.
A fonte continua majestosa. Bebedouro de pombos, local de encontros desencontrados ao longo do dia. De manhã os velhos curvados e amparados nas bengalas, “bengalando” tudo e todos e  à noite os jovens ganhando forças para as noites longas.
É um local fresco.

E o som dos fios de água caindo no tanque trazem à memória outros cenários e outros tempos.


No topo oposto à Igreja de St.º Antão, no passeio que ladeia o tabuleiro central e defronte ao Banco de Portugal juntam-se, no final dos períodos de trabalho, homens e mulheres que tomam autocarros para os bairros periféricos.
Lembra-se que era ali que se despedia da Anabela. Quase sempre, um até logo.
Verifica que, tal como antes, continuam a afluir aqui, a esta praça, muitos homens e mulheres de outros países. Breves instantes depois, gravadas duas ou três fotos, partem em grupo Rua 5 de Outubro acima. À procura da Catedral e do Templo.
A praça é acima de tudo, espaço dos nativos.
Quantos amores e desamores, quantos negócios, quantos encontros e desencontros, quantos trocares de olhares melosos, quantas abordagens, solidões e carícias pagas, quanta tristeza e quanta alegria, por ali não se cruzaram?
E não se cruzam ainda?
E quantas lutas? Acrescenta ele.
A praça é também o espaço dos cravos, das festas de abril, das lutas de maio.
E quando centenas de reboques, apinhados de gente e festivamente decorados pelas mãos calosas de homens e mulheres por ali desfilavam parecendo percorrer os caminhos de um futuro que se projetava radiante?
Ainda se lembra ele de Anabela, num desses reboques enfeitado com arcos e balõezinhos precoces de S. João.
Pele morena sob chapéu de palha, lenço pioneiro ao pescoço.
Lembra-se de ela lhe ter acenado e sorrido.
Nesse dia, nesse 1.º de Maio grande, beberam cerveja e trocaram o primeiro beijo.
Os lábios de Anabela eram mais quentes que o quente dia daquele dia primeiro de Maio. E se estava quente este…
O que será feito dela?
Será possível já se terem cruzado ali na praça e não se terem reconhecido?
Isso não , de certeza que não, reconhecer-se-iam.
Aquele  doce e meigo olhar  não pode ter-se  alterado. Ele iria reconhecê-lo mesmo no meio de uma multidão, quanto mais entre as dezenas de pessoas que a esta hora cruzam a praça..
Casou, de certeza. Era uma mulher muito bonita.
Terá filhos?
Se teve um menino,  acredito que lhe chamou João.
Ou  será que nunca mais se terá lembrado de si?
Dirá: João, qual João? Ah…tenho agora uma vaga ideia.
Não pode ser. Lembra-se. Garantidamente que se lembra, serenando a inquietação..
Ele sempre se lembrou dela.

António Claudino

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