domingo, 24 de fevereiro de 2013

Sim. Porque hoje é domingo

Contos de passagem.

Inevitavelmente. Sempre o que antes tenho dito.

Conto VI

Passagens…

O Fernandes já estava irritado. Cada vez carregava mais nos erres.

Mas afinal onde é o rraio dessa currva? Disseste que erra a seguirr à ponte e já passámos à ponte e nada.
-Se calhar há outra ponte…
-Não há nada. Eu conheço bem o caminho porrrra.
Este era o diálogo possível.
O Fernando havia conseguido convencer o Fernandes - um camarada militante do partido e que tinha uma pequena oficina de eletricista - a ir na sua velhinha Peugeot de caixa aberta, buscar uma motorizada que estava acidentada ali algures entre Montemor e as Brotas.
Eu sei que é depois do Ciborro, balbuciava o Fernando.
É depois do Ciborrro, é depois do Ciborrro, bem sabes tu! Parra a prróxima orrganiza melhorr as coisas, camarrada.
O Fernandes era assim. Parecia irascível, mas era um bom camarada. Era dos poucos que se disponibilizava para ajudar a juventude.
Mas eis que, finalmente, depois de uma curva e a seguir a uma ponte, avistaram a sachs encostada a uma azinheira. Estava seriamente danificada. Aro da frente feito num oito, pneu rebentado,  farol esborrachado, manetes de embraiagem e travão suspensas pelos cabos.
Viram-se e desejaram-se para a pôr em cima da carrinha.
Eh pá, esta coisa está mesmo em mau estado. Como é que isto aconteceu? - Perguntou o Fernandes.
Foi o Júlio, um camarada de Lisboa, que veio para cá participar numas reuniões, ia para uma reunião em Mora, ao sair da ponte deu de frente com um rebanho de vacas que atravessava a estrada e não teve tempo de parar…
Pobrre vaca…
Ah, sim?! Não te ouvi perguntar nada sobre o camarada…pois fica sabendo que partiu uma clavícula.
Não se pode brrincar, porrra?!
O Fernandes agora dava-lhe para a chalaça. Em todo o caminho de regresso a Montemor foi largando piadolas.
Porrra que esse tal Júlio estava mesmo com fome…uma vaca inteirrra?!
Chegados a Montemor, passaram pelo Centro de Trabalho para ver se encontravam ajuda para descarregar a motorizada. Naqueles tempos, por ali era sempre um grande bulício. Afluíam ao Centro de Trabalho  dezenas de camaradas para participar em reuniões das mais diversas ou em trânsito para reuniões nas freguesias ou com células das ucp(s).
Para toda esta azáfama era necessária a participação de muitos. O Fernandes oferecia-se  sempre para motorista, mas ultimamente e dadas algumas das suas particularidades, quase todos o evitavam. Sobrava sempre para a juventude, embora resmungando. Ele e um outro camarada, o Anastácio eram, assim se pode dizer, os motoristas da juventude.
Motoristas e financiadores, pois na maior parte das vezes nem viam o dinheiro do combustível.
São inúmeras as passagens que se conta de um e de outro, como por exemplo o ocorrido uma noite de Inverno, feia, escura e ventosa, em que o Fernandes foi com um camarada a uma reunião a S. Geraldo, no regresso, a alta velocidade numa estrada sinuosa, ficaram sem luzes e perante o grito aflito do companheiro, o Fernandes, atalhou: «não te assustes camarrada, fui eu que desliguei as luzes. A gente tem que estar prreparrado parra todas as situações».
Em contrapartida, o Anastácio era a calma em figura de gente. Dizia-se que nos podíamos descer em andamento, verter águas e voltar a apanhar o carro.
No lugar do banco do condutor, tinha um «mocho» amarrado com arames. Por ali, entre o «mocho» e o que restava dos outros assentos do carro, circundava  um pequeno cachorro, companhia insubstituível do Anastácio.
A maioria já conhecia o cachorro.
Um dia, o Anastácio foi com o Fernando, a Cabrela. E nesse dia foi também o Chico, um camarada do Secretariado local.
A dada altura da demorada viagem e porque o cachorro se intrometia entre os pedais, o Anastácio berrou-lhe: «vai lá pra trás chico, tás aqui tás a levar um porradão».
Do banco de trás, balbuciou a medo o Chico: «diga…».
Não é contigo, é com o cão, retorquiu o Anastácio.
O Fernando havia-se esquecido de apresentar os chicos…
A «fama» do Fernandes já passava para lá da «fronteira» das relações partidárias e ocorridas no âmbito dos «frequentadores» do CT de Montemor.
Na sequência de uma  completa ingenuidade, a Câmara, em que os comunistas estavam em larguíssima maioria, aprovou uma postura de regulamentação da propaganda em que na prática se proibiam as colagens de cartazes, murais e pinturas de palavras de ordem nas paredes.
Evidentemente que tal medida não podia ser tolerada e logo foi decidido avançar para o pleno usufruto da liberdade de expressão. Zelosa, a policia, tratava logo de identificar e levantar processos a todos os camaradas apanhados em tais atividades.
Como seria de supor, o Fernandes era campeão nos processos.
Numa noite, em que o serviço não apertava, entrou no CT e disse para o Fernando:     « Borra camarrada, que a revolução esperra por nós…».
O Fernando, que sabia o que o esperava, ainda tentou esquivar-se, mas em vão.
Estavam em plena atividade, quando o Fernandes sussurrou: «temos que nos esconderr, vem aí a ramona da policia».
O carro estava a trabalhar e de portas escancaradas e assim ficou, as latas da tinta e as trinchas, ficaram junto ao «trabalho» e eles esconderam-se sob a carcaça de uma camioneta velha que ali estava abandonada.
A policia chegou, olhou e um disse para o outro: «vamos embora que é outra vez o maluco do Fernandes».
Maluco! Maluco o tanas. Revolucionárrio.

 

António Claudino

domingo, 17 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Porque é domingo.

E sempre em memória do Pedro e do Gama

Conto V

Santiago

Ele bem viu.
A vermelho, numa placa de madeira sobre a bica do chafariz, constava o aviso: «água imprópria para consumo».
Mas era tanta a sede e era tanto o calor  e era tanta a secura que sentia vinda de dentro que descuidou as cautelas. E bebeu sofregamente.
No tanque para onde caía a água que saía da bica, caíam também os pingos de suor e as lágrimas que não conseguia conter.
Ali se quedou um pouco, no Chafariz das Bravas.
Apesar de finais de Setembro, estava quente o dia. Muito quente mesmo.
Ele havia ficado em Évora naquele dia,   digamos, em escala técnica, pois havia sido colocado em Beja e ia nessa noite apresentar-se ao colectivo que aí trabalhava.
Mas fez questão de fazer escala, tinha partido manhã cedo de Montemor e se quisesse tinha tido tempo para fazer a ligação à camioneta para Beja, mas Évora… é sempre Évora e arranjou uma desculpa para ali passar mais umas horas.
Iria para Beja na camioneta da tarde, garantiu por telefone à Cristina, reiterando repetidas vezes que lá estaria a horas.
Tal não iria acontecer.
Não por incumprimento ou indisciplina, mas porque razões maiores surgiram.
Secou a cara nas mangas da camisa e voltou ao carro onde o Manuel aguardava impaciente e nervoso.
E continuaram.
Fazia-se à sua passagem um silêncio profundo. Parecia mesmo que os carros desligavam os motores, os gaiatos saíam das escolas sem a algazarra costumeira, nos passeios as pessoas paravam, aturdidas.
Silêncio. Só silêncio. Um grande silêncio.
E ele sentia de novo a voz turvada.
Era cada vez mais forte a dor que sentia na garganta por cada vez que falava para o microfone.
Mas havia que continuar. A cidade tinha que saber o que se tinha acabado de passar.
E tinha que se reunir na Praça. Manifestar a sua revolta.
Era por isso necessário informar. Dizer a toda a gente, percorrer todas as ruas, becos, vielas, bairros.
Ir aos bairros, às fábricas, às escolas.
E por todos os cantos da cidade ecoava: «A GNR acaba de assassinar em Montemor dois trabalhadores da Reforma Agrária. Todos à Praça do Giraldo para denunciar este crime».
Para Évora confluíam agora a Cristina, o Fernando, o Carlos, o Mário, a Teresa e os outros.
Era preciso organizar o protesto. Era preciso honrar os mortos. Era imperioso condenar os crimes.
Redigiam-se em stencil os comunicados de denúncia e condenação que imprimiam nos velhos duplicadores, organizavam-se brigadas de distribuição.
Todos, estudantes e trabalhadores, da UEC ou da UJC afluíam ao velho 14  (tratamento carinhoso dado ao Centro de Trabalho do PCP  sito no Largo  Luis de Camões, 14) e perguntavam o que podiam fazer.
E havia tarefas para todos.
Terminado o trabalho no carro de som, poucos minutos antes da concentração na Praça chamaram o João ao 14. Era preciso saber urgentemente se o jovem Casquinha, um dos dois que havia sido assassinado, era militante da UJC.
Caravela - o camarada mais velho - já se sabia, era militante do PCP.
João sabia que ele tinha estado em reuniões com ele. Lembrava-se daquele nome e quase garantia que sim, que ele era da UJC.
Mas exigiam-lhe certezas: «Não podes só dizer que quase de certeza que sim, tens que ter a certeza de sim ou não» dizia-lhe irritado o António, o camarada responsável do Partido na Região.
E ele foi procurar no ficheiro. Procurou primeiro por ordem alfabética e depois já desesperado percorreu cada uma das fichas do ficheiro (mais de mil eram então) e não encontrou.
Foi para a praça e juntou-se ao mar de dor e revolta que ali se havia juntado naquele quente e triste final de Setembro.
Setembro Negro
Tarde Clara
Dois corpos
que caíram na Seara
Escreveram e musicaram mais tarde uns camaradas.
Os corpos iriam ficar em câmara ardente em Montemor. No Cine Teatro Curvo Semedo.
O João, o Mário, o Fernando e a Teresa iriam  ainda nessa noite para aí. Tinham agendado uma reunião com um camarada que vinha de Lisboa.
Aí chegados, na entrada do CT, estavam a mãe e uma irmã de Casquinha. Recebiam os pêsames e os consolos possíveis.
A irmã de Casquinha reconheceu o João e num abraço choroso disse-lhe: Não te esqueças camarada, ele era um de vocês, ele era comunista. Ainda há pouco de mais de um mês esteve numa reunião contigo na Casa do Povo de Santiago.
No Centro de Trabalho, já os esperava o Afonso, o camarada responsável nacional pela UJC.
Para além de vários aspectos organizativos para os funerais - esperavam-se milhares de pessoas de todo o país - abordaram de novo a questão da militância de Casquinha, ao que o João acrescentou as suas dúvidas reforçadas pelo episódio presente do encontro com a irmã. Não é suficiente para o podermos afirmar - respondeu secamente o Afonso.
Podemos, podemos, afirmou tabacoso entre duas baforadas, o Mário. Eu estava no 14 quando a Cristina telefonou à procura do João - como não estavas - a Cristina pediu-me para procurar no ficheiro e eu encontrei a ficha - está aqui comigo e dito isto,  tirou  do bolso da camisa (de onde sobressaía sempre o grosso maço de sg gigante) a ficha dobrada ao meio.
Num ímpeto que apanhou todos desprevenidos, o João levantou-se e berrou: «E tu, meu grande sacana, trouxeste durante todo este tempo essa informação contigo e não a partilhaste, nem mesmo quando angustiados falávamos nisso na viagem de Évora para aqui?
És mesmo um grande sacana. Lambe botas de merda.
O Afonso teve que intervir, porque a coisa ía ficar feia.
Nunca ninguém tinha visto o João assim.
Então, então…vamos a ter calma…eu compreendo que estejamos todos nervosos. Serenava rematando…vamos comer qualquer coisa que bem precisamos.
Comer? Antes disso vamos ter que arranjar uma bandeira da UJC para pôr no caixão de Casquinha. Mas não uma dessas pequenas de tafetá. Tem que ser uma bandeira à imagem da heroicidade dele. As bandeiras pequenas nem para as pessoas pequenas como…
Chega. Gritou agora o Afonso.
E foram enganar a fome numa tasca ali perto.
O João chegou mais tarde. Tinha ido falar com a Maria, a mãe de uma camarada da organização local, que tinha jeito para a costura,
Amanhã de manhã, antes de começarem as cerimónias, a bandeira estará sobre o caixão de Casquinha. Disse seco, enquanto se sentava.
Foi um encontro muito diferente dos outros. Bebericaram e comeram qualquer coisa quase em silêncio.
Só as perguntas frequentes do Afonso, atenuavam aquele gélido silêncio.
Sabem hoje e alguns suspeitaram-no logo, que nada mais iria ficar igual. Muitas transformações se iriam processar em cada um.
Aquela entrega romântica, aquele acreditar infinito, aquela certeza de alcançar, tinha ficado seriamente abalada com os trágicos acontecimentos daquela tarde.
Cada um deles já tinha estado em situações complicadas. A ofensiva contra a Reforma Agrária era brutal.
Grandes cargas policiais, perseguições a cavalo e com ferozes cães, bastonadas com bastões de ferro e de choque eléctrico, jactos de canhões de água, balas de borracha, mas um acontecimento assim não esperavam.
Agora, na próxima «entrega de reservas», havia que repensar a táctica. Tragicamente haviam tomado consciência que a sua entrega juvenil e corajosa tinha que ser alterada.
Logo pela manhã, repartiram-se por diversas funções. Na guarda de honra aos corpos, na recepção de delegações que apresentavam condolências, no atendimento e informação telefónica, nas mais diversas tarefas logísticas.
E a Montemor afluíam milhares de pessoas de todo o País.
Nos seus rostos, apesar de visíveis marcas de transtorno e dor, via-se determinação.
E uma grande firmeza na continuação da luta e na exigência de punição dos assassinos.
E foram tantos, tantos mil, que se ligou com gente o caminho entre Montemor e Santiago.

António Claudino

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Haja Papa


Expressa Mente

Já havia prometido não regressar aos comentários.

 

Reservava agora o meu tempo na publicação dos contos que o meu amigo António me tem feito chegar e que há quatro domingos dava à estampa, quando  dou com uma chamada de atenção muito importante no portal Sapo ainda há pouco e que continha em si razões de sobra para me tirar da razão.
Segundo este,o portal, o Expresso lembrava uma sua «caixa» dada à estampa quando da visita de Bento XVI a Portugal e onde se podia ler:

Papa em Lisboa: 280 mil no Terreiro do Paço
Ler mais: http://expresso.sapo.pt/papa-em-lisboa-280-mil-no-terreiro-do-paco=f786438#ixzz2KdP8gdJX (clique e espero que confirme por si)

E de imediato me veio à memória trabalho publicado no mesmo jornal, sobre as capacidades da mesma praça, no qual, com poses de rigor matemático era afirmado não caberem mais de 100 000 no dito terreiro.

Isto para o caso de uma manifestação convocada pela CGTP.

Ou seja, sem Portas e sem a mamã, sem duartes e sem pios.


Era este o título do referido trabalho:
Quantos cabem no Terreiro do Paço?

http://expresso.sapo.pt/quantos-cabem-no-terreiro-do-paco=f756492 (clique e espero que confirme por si)

Afinal, expressa mente quantos cabem?

domingo, 10 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Sempre.Lembrando o Gama e o Pedro.

Personagens presentes nestes contos. Algures.

Conto IV
O grupo

A noite já há muito que por ali se impunha e eles continuavam  despertos como se esta ainda agora fosse nascida.

Bebericavam, conversavam, relatavam histórias recentes e repisavam outras já tantas vezes contadas.
Tinham acabado a reunião por volta das oito, foram ao Zé das Iscas, comeram qualquer coisa e voltaram.
Ali estavam aqueles que calcorreando o Alentejo se atarefavam na preparação do 1.º Encontro Regional da Juventude Trabalhadora.
São quase todos pioneiros de um trabalho intenso de recrutamento e de crescimento da organização da Juventude Comunista.
O Vieira, o mais velho de todos, tinha vindo para ali logo que Abril raiou. Era o único de entre eles que desenvolvia atividade política antes do 25 de Abril - no MUD juvenil e no MJT - Movimento da Juventude Trabalhadora. Tinha vindo da zona de Lisboa. Ali, na velha sede do Largo Luís de Camões, fazia a sua casa. Que partilhava com outros e hoje connosco.
O Vieira era uma figura austera, muito exigente e pouco dado a graças. Não lhe conhecíamos namoro nem namorisco. Mas era justo na critica e humano na aceitação dos erros.
Cedo, naquela noite, como aliás sempre fazia, deixou a «farra» com um sonoro recado: «eu quero dormir e vocês se não querem e não se sentem cansados - coisa estranha - façam pelo menos pouca algazarra - até amanhã.»
Tinha sido pela mão dele, que todos, os que ali estavam, tinham vindo para funcionários.
O Fernando que havia saído para levar a casa a Teresa e a Cristina, regressou.
Era oriundo de Aljustrel, terra de mineiros, mas não era nem nunca tinha sido mineiro, com pena sua,. Antes de ser funcionário havia  sido empregado de balcão. Para mal dos pecados de todos os outros estava convencido que sabia cantar «à alentejana».
E mal regressado já entoava esganiçado «dá-me uma pinguinha de água», mas não era água o que ia bebendo. Adorava um bagacinho.
Daqui a pouco tens o «papá»  à perna, brincou o Carlos. Mas continuou-se cantando - o melhor que sabiam, o que era pouco - ali só o Mário arranhava qualquer coisa.
O Carlos não tinha tido tempo para qualquer profissão, ainda andava a estudar - fazia umas disciplinas de vez em quando,  mas optou pela UJC em detrimento da UEC que seria o seu «espaço» natural.
Aquilo é só copinhos de leite - dizia, quando era confrontado com o facto de sendo estudante, não ser da UEC. E os outros gozavam-no, dizendo: «precisamente por isso é que devias lá estar».
A Teresa, dizia-se operária agrícola. Ainda trabalhou uns dias na cooperativa, mas havia quem dissesse que tinha sido só numas jornadas de trabalho…
Era da margem esquerda do rio grande do sul. Das terras de aço de Serpa.
A Cristina , a sorumbática, já apresentava características refinadas de liderança. Aquela ia longe, tinha estilo, pensávamos todos em voz alta.
Todos sabiam, menos o eventualmente visado, que  a sorumbática Cristina, no seu mais secreto intimo, nutria uma enorme paixão pelo Vieira.
E neste descronemetrado relato, em que tal como o relógio de St. Antão não há meio de se acertar com o tempo,  pode-se desde já adiantar que a coisa não havia de concretizar-se…
Embora, pelo que se acaba de dizer, pareça absurda a comparação, se o Vieira era o «papá» a Cristina era quase a «mamã».
Era no entanto imperioso que salvaguardássemos que, tanto as referências a este amor (não partilhado), como a alcunha de «mamã» não chegassem de forma alguma aos ouvidos da dita, porque senão havia confusão da grossa.
Convêm lembrar que as questões do amor ou as questões dos amores, diziam então respeito ao «colectivo», o João sabia bem, o quanto o diziam…
O Fernando insistia no canto e agora, que o cansaço já quase vencia todos, só o Mário
o acompanhava. Este era dos poucos que às letras juntava um pouco de melodia.
O Mário era a «aquisição» mais recente e apresentava algumas dificuldades de integração. Em matéria de partilhas era problemático. Apresentava traços de um forte individualismo.
Era, no entanto, grande protegido da Cristina.
E eis feita em traços muito gerais a apresentação. Alguns não estavam na reunião de hoje e podem surgir mais tarde no relato.
O Vieira - que já dorme.
O João que fazendo um grande esforço para suportar o peso das pálpebras já sonha com a Anabela… ou com a Fernanda (não se sabe bem qual é paixão de momento) - mas não se duvide - ele apaixona-se mesmo - no que de melhor e pior esta patologia pode representar.
O Fernando que a esta hora ainda canta mais mal do que no inicio da noitada.
A Teresa deve estar já no segundo sono.
A Cristina que deve estar com um pesadelo centrado no dilema entre o amor da sua vida e o recato que deve manter.
O Carlos que continua preocupado com a algazarra do Fernando a que se juntou também o Mário.
O Mário que afina a voz julgando-se Paulo de Carvalho.
Foram buscar as placas de esponja e umas mantas e por ali se esticaram.
Lá fora já circulavam os carros a caminho do mercado e os padeiros iniciavam a distribuição do pão quente acabado de sair dos fornos.
Apesar de Évora ser uma cidade que acorda tarde alguns já haviam acordado para as suas lides diárias.
E por ali também não faltava muito.
O Vieira disso se encarregaria.

António Claudino

domingo, 3 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Sempre. Em memória do Pedro e do Gama.

Conto III

Mudar de vida

Aquele pensamento era recorrente nos últimos dias.
Apoquentava-o, tirava-lhe o sono. Não tinha tido sequer a coragem de o partilhar com ninguém.
Mas hoje tinha que se decidir, não suportava mais aquela pressão.
Havia que falar primeiro com o Fernando. Caramba, por tudo o que passaram juntos é imperioso que ele saiba em primeira mão o que venha a decidir e que possa dar opinião sobre o assunto.
Já com a Anabela a coisa se afigurava como mais difícil, apesar de saber que ela  partilhava das suas razões.
Via passar-lhe em revista acontecimentos recentes. Dos mais sombrios, como as noites atormentadas de Estremoz, o caso de Alter, às mais marcadamente humanas, como a partilha dos alimentos,  o calcorrear das aldeias de Odemira e Ourique com uma máquina de projetar no selim da motorizada e o riso dos gaiatos com os filmes de Charlot.
O que será e como será a sua vida depois?
Estudar, não estudou - nasceu em berço madrasta. Do pouco que trabalhou no campo não teve tempo para se especializar. Não sabe tirar cortiça, não sabe esgalhar. Só trabalho de força de braços.
Mas insiste, assim não pode continuar. Não suporta mais o rumo que as coisas estão a tomar e não se revê no estilo que agora querem impor.
Ele preferia o antes. Quando se partilhava quase tudo, incluindo o que não se tinha.
Quando, noite dentro, no Centro de Trabalho de Odemira o Gordinho lhe tinha ensinado a fazer uma caldeirada com duas sardinhas, acrescente-se, uma deliciosa caldeirada. Quando os cigarros eram contados e distribuídos, quando o dinheiro era repartido até ao último tostão.
Acha agora que esta camaradagem já não existe.
E apercebe-se - talvez em exagero - que a medida que querem tomar com ele, tem segundas intenções - mas não o pode provar. Insinua-se-lhe a ideia, que não são razões de natureza operativa as que estão por detrás da proposta que lhe foi apresentada. Por detrás da proposta estará sub-repticiamente bem preparada a intenção de o separar de Anabela.
-Também, tu amoleceste com essa paixão…eras muito mais dinâmico antes - já lhe disse o Fernando.
Mas não é nessa perspectiva que ele acha que está subjacente a ideia de forçar a separação.
Para ele há ali sacanice.
Coisa nova na forma de vida nova que tem experimentado nos últimos tempos.
Por outro lado  também não percebe porque é que é preciso promover um novato  - que ainda por cima, lhe parece cheio de traços burgueses no comportamento - a responsável regional, quando no colectivo existem camaradas com provas dadas. Nunca pensou em cargos, mas agora  dá por ele a não perceber, porque é que  a direção não confia nos quadros que ali têm trabalhado, que apanharam os tempos bons das jornadas de trabalho nas ucp(s) e do recrutamento fácil e em massa, mas que também se caldearam nos tempos posteriores, de ofensiva contra a reforma agrária, de cargas policiais e porrada, de incursão em territórios difíceis , mesmo por ali, naquelas terras de luta, como Mourão, Ourique e outros.
Porquê? Porquê?
Confronta-se agora com a primeira grande decisão da sua vida de adulto. Todas as que tomou até agora foram consequência e nunca fruto de uma opção trabalhada.
Trabalhar no campo, foi consequência da sua condição e das oportunidades que o 25 de Abril abriu. Trabalhar na UCP foi a continuação.
Ter aceitado ser funcionário da Juventude Comunista  foi consequência do deslumbramento com tudo o que de novo se passava à sua volta. A consciência política essa só veio depois,  entrelaçar-se com a sólida consciência social que já possuía.
O José Augusto era o responsável pelo Partido lá na terra.  Quando se lhe dirigiu para se inscrever este rematou-lhe: « Porque não te inscreves antes na Juventude, tu ainda és tão novo…» e assim se fez.
Até porque, sabe agora, a inscrição no Partido não era assim tão fácil…
Poucos dias depois do 1º de Maio daquele ano de 75 inscreveu-se na UJC  em parte marcado pela sugestão que Anabela lhe havia feito, mas muito pela força das dinâmicas dos acontecimentos.
Sou sócio fundador, ironiza frequentemente.
Foi o primeiro na aldeia a fazê-lo e por força disso e da sua dinâmica muitos outros rapazes e raparigas lhe seguiram o exemplo.
A sede do Partido era pequena para as suas reuniões. Era um colectivo muito forte e com muita capacidade de iniciativa. Chegavam a rivalizar com o Partido em capacidade de mobilização.
E foi naquele caldo que viveu os acontecimentos mais marcantes daquele que foi um verão quente. Que participou nas manifestações e se entrincheirou nas barricadas por onde acreditavam serem capazes de impedir a passagem da reação.
Agora ali estava, sentado nas escadas que dão acesso ao quintal do velho edifício que recentemente foi comprado para sede regional do partido e onde tem funcionado a JCP.
- Sabes que eu também não estou satisfeito com o rumo que as coisas estão a levar, mas acho que te estás a precipitar. E além do mais, depois destes anos, o que é que pensas fazer? Pensas passar ao partido?
- Passar ao partido não faz parte dos meus planos. Estou muito virado para passar «à vida civil», ir procurar trabalho…
_ Não achas que estás a dramatizar? Tu já foste colocado em sítios bem mais longe, foste o primeiro a ir  onde nenhum de nós tinha posto os pés e nunca te vi a reagir assim.
- Sabes bem que acho que por detrás desta proposta há «sacanice» e eu não suporto «sacanices». Por outro lado porquê esta desconfiança da direção nacional? Porque é preciso ir buscar um «pexote»  pequeno burguês, com poucas provas dadas e dar-lhe a  responsabilidade do organismo regional? Se não confiam em mim, porque sou reguila e frontal, porque não te propuseram a ti, muito mais alinhadinho ?
- Alinhadinho o tanas… também não papo tudo e  sabes que também discordo desta medida da direção. Mas não te conheço como desistente, tu vais sempre à liça, porque desistes agora?
- Não sei se é desistência, mas sei que é muito desalento. Lembras-te de muitas fomes partilhadas e das nossas invenções para as superar, lembras-te dos frios nas sedes onde improvisávamos camas onde enganávamos sonos e cansaços. Lembras-te claro, porque foi ontem e se queres saber e sabes, hoje estou disposto de novo a tudo, não estou é disposto a partilhar esta nova vertente dirigista, em que outros decidem e nós cumprimos.
- Não sei o que te diga mais. E a Anabela, o que diz?
- Ainda não falámos.
- Tenho de ir apanhar a camioneta. Vou hoje a Cabeção.
- Adeus, Fernando.

António Claudino