domingo, 24 de fevereiro de 2013

Sim. Porque hoje é domingo

Contos de passagem.

Inevitavelmente. Sempre o que antes tenho dito.

Conto VI

Passagens…

O Fernandes já estava irritado. Cada vez carregava mais nos erres.

Mas afinal onde é o rraio dessa currva? Disseste que erra a seguirr à ponte e já passámos à ponte e nada.
-Se calhar há outra ponte…
-Não há nada. Eu conheço bem o caminho porrrra.
Este era o diálogo possível.
O Fernando havia conseguido convencer o Fernandes - um camarada militante do partido e que tinha uma pequena oficina de eletricista - a ir na sua velhinha Peugeot de caixa aberta, buscar uma motorizada que estava acidentada ali algures entre Montemor e as Brotas.
Eu sei que é depois do Ciborro, balbuciava o Fernando.
É depois do Ciborrro, é depois do Ciborrro, bem sabes tu! Parra a prróxima orrganiza melhorr as coisas, camarrada.
O Fernandes era assim. Parecia irascível, mas era um bom camarada. Era dos poucos que se disponibilizava para ajudar a juventude.
Mas eis que, finalmente, depois de uma curva e a seguir a uma ponte, avistaram a sachs encostada a uma azinheira. Estava seriamente danificada. Aro da frente feito num oito, pneu rebentado,  farol esborrachado, manetes de embraiagem e travão suspensas pelos cabos.
Viram-se e desejaram-se para a pôr em cima da carrinha.
Eh pá, esta coisa está mesmo em mau estado. Como é que isto aconteceu? - Perguntou o Fernandes.
Foi o Júlio, um camarada de Lisboa, que veio para cá participar numas reuniões, ia para uma reunião em Mora, ao sair da ponte deu de frente com um rebanho de vacas que atravessava a estrada e não teve tempo de parar…
Pobrre vaca…
Ah, sim?! Não te ouvi perguntar nada sobre o camarada…pois fica sabendo que partiu uma clavícula.
Não se pode brrincar, porrra?!
O Fernandes agora dava-lhe para a chalaça. Em todo o caminho de regresso a Montemor foi largando piadolas.
Porrra que esse tal Júlio estava mesmo com fome…uma vaca inteirrra?!
Chegados a Montemor, passaram pelo Centro de Trabalho para ver se encontravam ajuda para descarregar a motorizada. Naqueles tempos, por ali era sempre um grande bulício. Afluíam ao Centro de Trabalho  dezenas de camaradas para participar em reuniões das mais diversas ou em trânsito para reuniões nas freguesias ou com células das ucp(s).
Para toda esta azáfama era necessária a participação de muitos. O Fernandes oferecia-se  sempre para motorista, mas ultimamente e dadas algumas das suas particularidades, quase todos o evitavam. Sobrava sempre para a juventude, embora resmungando. Ele e um outro camarada, o Anastácio eram, assim se pode dizer, os motoristas da juventude.
Motoristas e financiadores, pois na maior parte das vezes nem viam o dinheiro do combustível.
São inúmeras as passagens que se conta de um e de outro, como por exemplo o ocorrido uma noite de Inverno, feia, escura e ventosa, em que o Fernandes foi com um camarada a uma reunião a S. Geraldo, no regresso, a alta velocidade numa estrada sinuosa, ficaram sem luzes e perante o grito aflito do companheiro, o Fernandes, atalhou: «não te assustes camarrada, fui eu que desliguei as luzes. A gente tem que estar prreparrado parra todas as situações».
Em contrapartida, o Anastácio era a calma em figura de gente. Dizia-se que nos podíamos descer em andamento, verter águas e voltar a apanhar o carro.
No lugar do banco do condutor, tinha um «mocho» amarrado com arames. Por ali, entre o «mocho» e o que restava dos outros assentos do carro, circundava  um pequeno cachorro, companhia insubstituível do Anastácio.
A maioria já conhecia o cachorro.
Um dia, o Anastácio foi com o Fernando, a Cabrela. E nesse dia foi também o Chico, um camarada do Secretariado local.
A dada altura da demorada viagem e porque o cachorro se intrometia entre os pedais, o Anastácio berrou-lhe: «vai lá pra trás chico, tás aqui tás a levar um porradão».
Do banco de trás, balbuciou a medo o Chico: «diga…».
Não é contigo, é com o cão, retorquiu o Anastácio.
O Fernando havia-se esquecido de apresentar os chicos…
A «fama» do Fernandes já passava para lá da «fronteira» das relações partidárias e ocorridas no âmbito dos «frequentadores» do CT de Montemor.
Na sequência de uma  completa ingenuidade, a Câmara, em que os comunistas estavam em larguíssima maioria, aprovou uma postura de regulamentação da propaganda em que na prática se proibiam as colagens de cartazes, murais e pinturas de palavras de ordem nas paredes.
Evidentemente que tal medida não podia ser tolerada e logo foi decidido avançar para o pleno usufruto da liberdade de expressão. Zelosa, a policia, tratava logo de identificar e levantar processos a todos os camaradas apanhados em tais atividades.
Como seria de supor, o Fernandes era campeão nos processos.
Numa noite, em que o serviço não apertava, entrou no CT e disse para o Fernando:     « Borra camarrada, que a revolução esperra por nós…».
O Fernando, que sabia o que o esperava, ainda tentou esquivar-se, mas em vão.
Estavam em plena atividade, quando o Fernandes sussurrou: «temos que nos esconderr, vem aí a ramona da policia».
O carro estava a trabalhar e de portas escancaradas e assim ficou, as latas da tinta e as trinchas, ficaram junto ao «trabalho» e eles esconderam-se sob a carcaça de uma camioneta velha que ali estava abandonada.
A policia chegou, olhou e um disse para o outro: «vamos embora que é outra vez o maluco do Fernandes».
Maluco! Maluco o tanas. Revolucionárrio.

 

António Claudino

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