domingo, 3 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Sempre. Em memória do Pedro e do Gama.

Conto III

Mudar de vida

Aquele pensamento era recorrente nos últimos dias.
Apoquentava-o, tirava-lhe o sono. Não tinha tido sequer a coragem de o partilhar com ninguém.
Mas hoje tinha que se decidir, não suportava mais aquela pressão.
Havia que falar primeiro com o Fernando. Caramba, por tudo o que passaram juntos é imperioso que ele saiba em primeira mão o que venha a decidir e que possa dar opinião sobre o assunto.
Já com a Anabela a coisa se afigurava como mais difícil, apesar de saber que ela  partilhava das suas razões.
Via passar-lhe em revista acontecimentos recentes. Dos mais sombrios, como as noites atormentadas de Estremoz, o caso de Alter, às mais marcadamente humanas, como a partilha dos alimentos,  o calcorrear das aldeias de Odemira e Ourique com uma máquina de projetar no selim da motorizada e o riso dos gaiatos com os filmes de Charlot.
O que será e como será a sua vida depois?
Estudar, não estudou - nasceu em berço madrasta. Do pouco que trabalhou no campo não teve tempo para se especializar. Não sabe tirar cortiça, não sabe esgalhar. Só trabalho de força de braços.
Mas insiste, assim não pode continuar. Não suporta mais o rumo que as coisas estão a tomar e não se revê no estilo que agora querem impor.
Ele preferia o antes. Quando se partilhava quase tudo, incluindo o que não se tinha.
Quando, noite dentro, no Centro de Trabalho de Odemira o Gordinho lhe tinha ensinado a fazer uma caldeirada com duas sardinhas, acrescente-se, uma deliciosa caldeirada. Quando os cigarros eram contados e distribuídos, quando o dinheiro era repartido até ao último tostão.
Acha agora que esta camaradagem já não existe.
E apercebe-se - talvez em exagero - que a medida que querem tomar com ele, tem segundas intenções - mas não o pode provar. Insinua-se-lhe a ideia, que não são razões de natureza operativa as que estão por detrás da proposta que lhe foi apresentada. Por detrás da proposta estará sub-repticiamente bem preparada a intenção de o separar de Anabela.
-Também, tu amoleceste com essa paixão…eras muito mais dinâmico antes - já lhe disse o Fernando.
Mas não é nessa perspectiva que ele acha que está subjacente a ideia de forçar a separação.
Para ele há ali sacanice.
Coisa nova na forma de vida nova que tem experimentado nos últimos tempos.
Por outro lado  também não percebe porque é que é preciso promover um novato  - que ainda por cima, lhe parece cheio de traços burgueses no comportamento - a responsável regional, quando no colectivo existem camaradas com provas dadas. Nunca pensou em cargos, mas agora  dá por ele a não perceber, porque é que  a direção não confia nos quadros que ali têm trabalhado, que apanharam os tempos bons das jornadas de trabalho nas ucp(s) e do recrutamento fácil e em massa, mas que também se caldearam nos tempos posteriores, de ofensiva contra a reforma agrária, de cargas policiais e porrada, de incursão em territórios difíceis , mesmo por ali, naquelas terras de luta, como Mourão, Ourique e outros.
Porquê? Porquê?
Confronta-se agora com a primeira grande decisão da sua vida de adulto. Todas as que tomou até agora foram consequência e nunca fruto de uma opção trabalhada.
Trabalhar no campo, foi consequência da sua condição e das oportunidades que o 25 de Abril abriu. Trabalhar na UCP foi a continuação.
Ter aceitado ser funcionário da Juventude Comunista  foi consequência do deslumbramento com tudo o que de novo se passava à sua volta. A consciência política essa só veio depois,  entrelaçar-se com a sólida consciência social que já possuía.
O José Augusto era o responsável pelo Partido lá na terra.  Quando se lhe dirigiu para se inscrever este rematou-lhe: « Porque não te inscreves antes na Juventude, tu ainda és tão novo…» e assim se fez.
Até porque, sabe agora, a inscrição no Partido não era assim tão fácil…
Poucos dias depois do 1º de Maio daquele ano de 75 inscreveu-se na UJC  em parte marcado pela sugestão que Anabela lhe havia feito, mas muito pela força das dinâmicas dos acontecimentos.
Sou sócio fundador, ironiza frequentemente.
Foi o primeiro na aldeia a fazê-lo e por força disso e da sua dinâmica muitos outros rapazes e raparigas lhe seguiram o exemplo.
A sede do Partido era pequena para as suas reuniões. Era um colectivo muito forte e com muita capacidade de iniciativa. Chegavam a rivalizar com o Partido em capacidade de mobilização.
E foi naquele caldo que viveu os acontecimentos mais marcantes daquele que foi um verão quente. Que participou nas manifestações e se entrincheirou nas barricadas por onde acreditavam serem capazes de impedir a passagem da reação.
Agora ali estava, sentado nas escadas que dão acesso ao quintal do velho edifício que recentemente foi comprado para sede regional do partido e onde tem funcionado a JCP.
- Sabes que eu também não estou satisfeito com o rumo que as coisas estão a levar, mas acho que te estás a precipitar. E além do mais, depois destes anos, o que é que pensas fazer? Pensas passar ao partido?
- Passar ao partido não faz parte dos meus planos. Estou muito virado para passar «à vida civil», ir procurar trabalho…
_ Não achas que estás a dramatizar? Tu já foste colocado em sítios bem mais longe, foste o primeiro a ir  onde nenhum de nós tinha posto os pés e nunca te vi a reagir assim.
- Sabes bem que acho que por detrás desta proposta há «sacanice» e eu não suporto «sacanices». Por outro lado porquê esta desconfiança da direção nacional? Porque é preciso ir buscar um «pexote»  pequeno burguês, com poucas provas dadas e dar-lhe a  responsabilidade do organismo regional? Se não confiam em mim, porque sou reguila e frontal, porque não te propuseram a ti, muito mais alinhadinho ?
- Alinhadinho o tanas… também não papo tudo e  sabes que também discordo desta medida da direção. Mas não te conheço como desistente, tu vais sempre à liça, porque desistes agora?
- Não sei se é desistência, mas sei que é muito desalento. Lembras-te de muitas fomes partilhadas e das nossas invenções para as superar, lembras-te dos frios nas sedes onde improvisávamos camas onde enganávamos sonos e cansaços. Lembras-te claro, porque foi ontem e se queres saber e sabes, hoje estou disposto de novo a tudo, não estou é disposto a partilhar esta nova vertente dirigista, em que outros decidem e nós cumprimos.
- Não sei o que te diga mais. E a Anabela, o que diz?
- Ainda não falámos.
- Tenho de ir apanhar a camioneta. Vou hoje a Cabeção.
- Adeus, Fernando.

António Claudino

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