domingo, 17 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Porque é domingo.

E sempre em memória do Pedro e do Gama

Conto V

Santiago

Ele bem viu.
A vermelho, numa placa de madeira sobre a bica do chafariz, constava o aviso: «água imprópria para consumo».
Mas era tanta a sede e era tanto o calor  e era tanta a secura que sentia vinda de dentro que descuidou as cautelas. E bebeu sofregamente.
No tanque para onde caía a água que saía da bica, caíam também os pingos de suor e as lágrimas que não conseguia conter.
Ali se quedou um pouco, no Chafariz das Bravas.
Apesar de finais de Setembro, estava quente o dia. Muito quente mesmo.
Ele havia ficado em Évora naquele dia,   digamos, em escala técnica, pois havia sido colocado em Beja e ia nessa noite apresentar-se ao colectivo que aí trabalhava.
Mas fez questão de fazer escala, tinha partido manhã cedo de Montemor e se quisesse tinha tido tempo para fazer a ligação à camioneta para Beja, mas Évora… é sempre Évora e arranjou uma desculpa para ali passar mais umas horas.
Iria para Beja na camioneta da tarde, garantiu por telefone à Cristina, reiterando repetidas vezes que lá estaria a horas.
Tal não iria acontecer.
Não por incumprimento ou indisciplina, mas porque razões maiores surgiram.
Secou a cara nas mangas da camisa e voltou ao carro onde o Manuel aguardava impaciente e nervoso.
E continuaram.
Fazia-se à sua passagem um silêncio profundo. Parecia mesmo que os carros desligavam os motores, os gaiatos saíam das escolas sem a algazarra costumeira, nos passeios as pessoas paravam, aturdidas.
Silêncio. Só silêncio. Um grande silêncio.
E ele sentia de novo a voz turvada.
Era cada vez mais forte a dor que sentia na garganta por cada vez que falava para o microfone.
Mas havia que continuar. A cidade tinha que saber o que se tinha acabado de passar.
E tinha que se reunir na Praça. Manifestar a sua revolta.
Era por isso necessário informar. Dizer a toda a gente, percorrer todas as ruas, becos, vielas, bairros.
Ir aos bairros, às fábricas, às escolas.
E por todos os cantos da cidade ecoava: «A GNR acaba de assassinar em Montemor dois trabalhadores da Reforma Agrária. Todos à Praça do Giraldo para denunciar este crime».
Para Évora confluíam agora a Cristina, o Fernando, o Carlos, o Mário, a Teresa e os outros.
Era preciso organizar o protesto. Era preciso honrar os mortos. Era imperioso condenar os crimes.
Redigiam-se em stencil os comunicados de denúncia e condenação que imprimiam nos velhos duplicadores, organizavam-se brigadas de distribuição.
Todos, estudantes e trabalhadores, da UEC ou da UJC afluíam ao velho 14  (tratamento carinhoso dado ao Centro de Trabalho do PCP  sito no Largo  Luis de Camões, 14) e perguntavam o que podiam fazer.
E havia tarefas para todos.
Terminado o trabalho no carro de som, poucos minutos antes da concentração na Praça chamaram o João ao 14. Era preciso saber urgentemente se o jovem Casquinha, um dos dois que havia sido assassinado, era militante da UJC.
Caravela - o camarada mais velho - já se sabia, era militante do PCP.
João sabia que ele tinha estado em reuniões com ele. Lembrava-se daquele nome e quase garantia que sim, que ele era da UJC.
Mas exigiam-lhe certezas: «Não podes só dizer que quase de certeza que sim, tens que ter a certeza de sim ou não» dizia-lhe irritado o António, o camarada responsável do Partido na Região.
E ele foi procurar no ficheiro. Procurou primeiro por ordem alfabética e depois já desesperado percorreu cada uma das fichas do ficheiro (mais de mil eram então) e não encontrou.
Foi para a praça e juntou-se ao mar de dor e revolta que ali se havia juntado naquele quente e triste final de Setembro.
Setembro Negro
Tarde Clara
Dois corpos
que caíram na Seara
Escreveram e musicaram mais tarde uns camaradas.
Os corpos iriam ficar em câmara ardente em Montemor. No Cine Teatro Curvo Semedo.
O João, o Mário, o Fernando e a Teresa iriam  ainda nessa noite para aí. Tinham agendado uma reunião com um camarada que vinha de Lisboa.
Aí chegados, na entrada do CT, estavam a mãe e uma irmã de Casquinha. Recebiam os pêsames e os consolos possíveis.
A irmã de Casquinha reconheceu o João e num abraço choroso disse-lhe: Não te esqueças camarada, ele era um de vocês, ele era comunista. Ainda há pouco de mais de um mês esteve numa reunião contigo na Casa do Povo de Santiago.
No Centro de Trabalho, já os esperava o Afonso, o camarada responsável nacional pela UJC.
Para além de vários aspectos organizativos para os funerais - esperavam-se milhares de pessoas de todo o país - abordaram de novo a questão da militância de Casquinha, ao que o João acrescentou as suas dúvidas reforçadas pelo episódio presente do encontro com a irmã. Não é suficiente para o podermos afirmar - respondeu secamente o Afonso.
Podemos, podemos, afirmou tabacoso entre duas baforadas, o Mário. Eu estava no 14 quando a Cristina telefonou à procura do João - como não estavas - a Cristina pediu-me para procurar no ficheiro e eu encontrei a ficha - está aqui comigo e dito isto,  tirou  do bolso da camisa (de onde sobressaía sempre o grosso maço de sg gigante) a ficha dobrada ao meio.
Num ímpeto que apanhou todos desprevenidos, o João levantou-se e berrou: «E tu, meu grande sacana, trouxeste durante todo este tempo essa informação contigo e não a partilhaste, nem mesmo quando angustiados falávamos nisso na viagem de Évora para aqui?
És mesmo um grande sacana. Lambe botas de merda.
O Afonso teve que intervir, porque a coisa ía ficar feia.
Nunca ninguém tinha visto o João assim.
Então, então…vamos a ter calma…eu compreendo que estejamos todos nervosos. Serenava rematando…vamos comer qualquer coisa que bem precisamos.
Comer? Antes disso vamos ter que arranjar uma bandeira da UJC para pôr no caixão de Casquinha. Mas não uma dessas pequenas de tafetá. Tem que ser uma bandeira à imagem da heroicidade dele. As bandeiras pequenas nem para as pessoas pequenas como…
Chega. Gritou agora o Afonso.
E foram enganar a fome numa tasca ali perto.
O João chegou mais tarde. Tinha ido falar com a Maria, a mãe de uma camarada da organização local, que tinha jeito para a costura,
Amanhã de manhã, antes de começarem as cerimónias, a bandeira estará sobre o caixão de Casquinha. Disse seco, enquanto se sentava.
Foi um encontro muito diferente dos outros. Bebericaram e comeram qualquer coisa quase em silêncio.
Só as perguntas frequentes do Afonso, atenuavam aquele gélido silêncio.
Sabem hoje e alguns suspeitaram-no logo, que nada mais iria ficar igual. Muitas transformações se iriam processar em cada um.
Aquela entrega romântica, aquele acreditar infinito, aquela certeza de alcançar, tinha ficado seriamente abalada com os trágicos acontecimentos daquela tarde.
Cada um deles já tinha estado em situações complicadas. A ofensiva contra a Reforma Agrária era brutal.
Grandes cargas policiais, perseguições a cavalo e com ferozes cães, bastonadas com bastões de ferro e de choque eléctrico, jactos de canhões de água, balas de borracha, mas um acontecimento assim não esperavam.
Agora, na próxima «entrega de reservas», havia que repensar a táctica. Tragicamente haviam tomado consciência que a sua entrega juvenil e corajosa tinha que ser alterada.
Logo pela manhã, repartiram-se por diversas funções. Na guarda de honra aos corpos, na recepção de delegações que apresentavam condolências, no atendimento e informação telefónica, nas mais diversas tarefas logísticas.
E a Montemor afluíam milhares de pessoas de todo o País.
Nos seus rostos, apesar de visíveis marcas de transtorno e dor, via-se determinação.
E uma grande firmeza na continuação da luta e na exigência de punição dos assassinos.
E foram tantos, tantos mil, que se ligou com gente o caminho entre Montemor e Santiago.

António Claudino

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