domingo, 10 de fevereiro de 2013

CONTOS DE PASSAGEM

Sempre.Lembrando o Gama e o Pedro.

Personagens presentes nestes contos. Algures.

Conto IV
O grupo

A noite já há muito que por ali se impunha e eles continuavam  despertos como se esta ainda agora fosse nascida.

Bebericavam, conversavam, relatavam histórias recentes e repisavam outras já tantas vezes contadas.
Tinham acabado a reunião por volta das oito, foram ao Zé das Iscas, comeram qualquer coisa e voltaram.
Ali estavam aqueles que calcorreando o Alentejo se atarefavam na preparação do 1.º Encontro Regional da Juventude Trabalhadora.
São quase todos pioneiros de um trabalho intenso de recrutamento e de crescimento da organização da Juventude Comunista.
O Vieira, o mais velho de todos, tinha vindo para ali logo que Abril raiou. Era o único de entre eles que desenvolvia atividade política antes do 25 de Abril - no MUD juvenil e no MJT - Movimento da Juventude Trabalhadora. Tinha vindo da zona de Lisboa. Ali, na velha sede do Largo Luís de Camões, fazia a sua casa. Que partilhava com outros e hoje connosco.
O Vieira era uma figura austera, muito exigente e pouco dado a graças. Não lhe conhecíamos namoro nem namorisco. Mas era justo na critica e humano na aceitação dos erros.
Cedo, naquela noite, como aliás sempre fazia, deixou a «farra» com um sonoro recado: «eu quero dormir e vocês se não querem e não se sentem cansados - coisa estranha - façam pelo menos pouca algazarra - até amanhã.»
Tinha sido pela mão dele, que todos, os que ali estavam, tinham vindo para funcionários.
O Fernando que havia saído para levar a casa a Teresa e a Cristina, regressou.
Era oriundo de Aljustrel, terra de mineiros, mas não era nem nunca tinha sido mineiro, com pena sua,. Antes de ser funcionário havia  sido empregado de balcão. Para mal dos pecados de todos os outros estava convencido que sabia cantar «à alentejana».
E mal regressado já entoava esganiçado «dá-me uma pinguinha de água», mas não era água o que ia bebendo. Adorava um bagacinho.
Daqui a pouco tens o «papá»  à perna, brincou o Carlos. Mas continuou-se cantando - o melhor que sabiam, o que era pouco - ali só o Mário arranhava qualquer coisa.
O Carlos não tinha tido tempo para qualquer profissão, ainda andava a estudar - fazia umas disciplinas de vez em quando,  mas optou pela UJC em detrimento da UEC que seria o seu «espaço» natural.
Aquilo é só copinhos de leite - dizia, quando era confrontado com o facto de sendo estudante, não ser da UEC. E os outros gozavam-no, dizendo: «precisamente por isso é que devias lá estar».
A Teresa, dizia-se operária agrícola. Ainda trabalhou uns dias na cooperativa, mas havia quem dissesse que tinha sido só numas jornadas de trabalho…
Era da margem esquerda do rio grande do sul. Das terras de aço de Serpa.
A Cristina , a sorumbática, já apresentava características refinadas de liderança. Aquela ia longe, tinha estilo, pensávamos todos em voz alta.
Todos sabiam, menos o eventualmente visado, que  a sorumbática Cristina, no seu mais secreto intimo, nutria uma enorme paixão pelo Vieira.
E neste descronemetrado relato, em que tal como o relógio de St. Antão não há meio de se acertar com o tempo,  pode-se desde já adiantar que a coisa não havia de concretizar-se…
Embora, pelo que se acaba de dizer, pareça absurda a comparação, se o Vieira era o «papá» a Cristina era quase a «mamã».
Era no entanto imperioso que salvaguardássemos que, tanto as referências a este amor (não partilhado), como a alcunha de «mamã» não chegassem de forma alguma aos ouvidos da dita, porque senão havia confusão da grossa.
Convêm lembrar que as questões do amor ou as questões dos amores, diziam então respeito ao «colectivo», o João sabia bem, o quanto o diziam…
O Fernando insistia no canto e agora, que o cansaço já quase vencia todos, só o Mário
o acompanhava. Este era dos poucos que às letras juntava um pouco de melodia.
O Mário era a «aquisição» mais recente e apresentava algumas dificuldades de integração. Em matéria de partilhas era problemático. Apresentava traços de um forte individualismo.
Era, no entanto, grande protegido da Cristina.
E eis feita em traços muito gerais a apresentação. Alguns não estavam na reunião de hoje e podem surgir mais tarde no relato.
O Vieira - que já dorme.
O João que fazendo um grande esforço para suportar o peso das pálpebras já sonha com a Anabela… ou com a Fernanda (não se sabe bem qual é paixão de momento) - mas não se duvide - ele apaixona-se mesmo - no que de melhor e pior esta patologia pode representar.
O Fernando que a esta hora ainda canta mais mal do que no inicio da noitada.
A Teresa deve estar já no segundo sono.
A Cristina que deve estar com um pesadelo centrado no dilema entre o amor da sua vida e o recato que deve manter.
O Carlos que continua preocupado com a algazarra do Fernando a que se juntou também o Mário.
O Mário que afina a voz julgando-se Paulo de Carvalho.
Foram buscar as placas de esponja e umas mantas e por ali se esticaram.
Lá fora já circulavam os carros a caminho do mercado e os padeiros iniciavam a distribuição do pão quente acabado de sair dos fornos.
Apesar de Évora ser uma cidade que acorda tarde alguns já haviam acordado para as suas lides diárias.
E por ali também não faltava muito.
O Vieira disso se encarregaria.

António Claudino

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