segunda-feira, 11 de março de 2013

Ode Mira

(ligeiramente atrasado…mas já explicado. Minimamente…)

Conto VIII


Uma vez mais havia fugido ao cumprimento das regras.
Era tão useiro esse seu comportamento como useira era a obstinação que punha no cumprimento de tarefas. Uma contradição em pessoa, como dizia a Cristina. Não lhe dissessem como, dissessem-lhe o quê e ele cumpriria.
Tinha uma reunião marcada, para apresentação, em Odemira, na sexta-feira. Para lá chegar só tinha  que apanhar  a camioneta que partia de Beja na tarde de quinta, pois esta chegava já noite a Odemira, bem depois da hora marcada para a reunião de apresentação.
Ele tomou de facto essa camioneta e partilhou a viagem até Aljustrel com o camarada que acompanhava esse concelho. Durante a viagem este falou-lhe da terra, do património de lutas, dos mineiros e das suas lutas e dos seus cantes.
Foi sentido em crescendo um apelo vindo dali.
E ele desceu em Aljustrel e disse: fico aqui contigo hoje, quero conhecer esta terra. Amanhã estarei em Odemira.
-Mas olha que não tens camioneta para lá estares a horas.
Não te preocupes. Lá estarei.
E nessa noite, percorreu a terra, entrou em tabernas, bebeu vinho e foi apresentado aos camaradas.
E ficou estarrecido com o som do cante que percorria as ruas e que saía das tabernas, cantado por grupos de homens naquele fim de tarde.
E ouviu as histórias das lutas e dos sofrimentos dos homens das minas.
Histórias com padrões idênticos às histórias de outras lutas que já conhecia doutros pontos deste Alentejo, mas que ali tinham particularidades que desconhecia.
E porque o interior da terra, as suas entranhas, era um cenário que se lhe apresentava como terrível, ele ouvia e imaginava a coragem necessária a esta gente.
No dia seguinte, bem cedo, fez-se à boleia. Não foi fácil. Mas apanhou boleia numa camioneta de distribuição de cerveja cujo motorista lhe pôs como condição que se descesse antes de chegar à vila: - sabes, não posso dar boleias, por isso vais ter de te descer um pouco antes de Odemira, não vá eu ter problemas - eu aviso-te quando for.
Largos tempos depois de um caminho sinuoso: É aqui - tens de te descer.
Agradeceu e fez-se ao resto do caminho - a pé. Dali já se avistava a vila, mas o raio das curvas da estrada, pareciam afastá-la.
Mais tarde do que havia imaginado quando se desceu da camioneta da cerveja, chegou a Odemira. Exausto (a noite tinha sido curta e o vinho tinha sido comprido).
Entrou num café e perguntou onde era a Câmara - tinham-lhe dito que o Centro de Trabalho era próximo da Câmara - e ficou a saber que ainda tinha que dar às sapatilhas, ainda era longe e quando no Alentejo ainda é longe…
Eram para aí umas duas da tarde e estava a chegar ao pé da Câmara. Tinha fome, mas não tinha dinheiro. O Centro de Trabalho era logo ali - estava fechado - e a loja de oculista, cujo proprietário lhe tinham dito, ter a chave, estava fechada. Teria que aguardar até às três da tarde, para que abrisse.
Vaguearam, ele e o apetite que o acompanhava, por ali. Sentiu que umas velhotas trocavam segredinhos à sua passagem amiúde. É normal. Estava habituado. Tinha feito tanta vez de estranho.
E assim esperava pelas três horas da tarde, que a loja abrisse. E viu que ali era outro Alentejo,  horizonte mais recortado por montes altos, campos mais verdes, menos sobreiros e azinheiras e um rio. Um rio já a sério que ele avistava circundando a vila e que ele sabia que se despedia do Alentejo ali para os lados de Mil Fontes.
Desceu até à sua margem. Junto à ponte havia um pequeno jardim com mesas de pic nic.
Aí se quedou. Sentou-se numa das mesas e tirou da sacola «Os esteiros» a sua companhia de agora e que devorava com prazer.
Nem deu pela fome nem pelo tempo que correu.
Eram quase quatro da tarde quando se apercebeu. Nas mesas em volta tinham-se juntado grupos de velhotes. Numa das mesas jogava-se uma agitada suecada.
Subiu a rua íngreme e dirigia-se à loja de oculista quando reparou que o centro de trabalho já estava aberto.
Entrou e ouviu: «Deves ser o Fernando! Não era para teres vindo ontem à noite?».
Lá se explicou e o camarada entretanto apresentou-se. Era o Cristóvão, um dos funcionários do partido em serviço em Odemira.
Já comeste? Perguntou-lhe este.
Ontem. Respondeu.
Tens aí um resto de caldeirada de sardinhas que fiz para mim. Podes comer.
Quase sempre reservado, mas agora não se fez rogado.
E que boa estava a caldeirada.
Sabes, disse-lhe o Cristóvão. Aqui é um pouco o nosso quartel general para os concelhos de Odemira e Ourique. Estou aqui eu, que tenho parte do concelho de Odemira - que é muito grande como deves saber - e o concelho de Ourique e está também outro camarada, o Manuel Francisco.
E onde está ele agora?
Foi almoçar a um tasco de um camarada nosso. Chegámos aqui já por volta das três.
Eu faço a comida mas ele é fino, vai sempre comer ao tasco. Ainda lhe propus que eu cozinhava e ele lavava a loiça, mas não quis. Disse o Cristóvão quando verificava que o Manuel Francisco já entrava no centro de trabalho.
Não quero morrer intoxicado com as tuas comidas - gracejou. Já chegaste? Dirigindo-se ao Fernando.
Sim e já comi e a caldeirada estava muito boa.
Gaba-o.
Sentaram-se e os camaradas apresentaram-lhe em traços gerais os concelhos, os quadros mais destacados e aqueles a que poderia recorrer em caso de dificuldade, os meios de transporte possíveis, os apoios possíveis nas freguesias.
Aqui o problema maior são as distâncias e a profusão de localidades. Uma ou outra é-nos mais adversa, agora Ourique… aí tens que ter cuidados.
Ah e aqui não há aquela coisa da separação juventude, partido. Aqui, talvez por causa das distâncias estamos todos no mesmo barco…
Ou então talvez por causa do mar estar tão perto..arriscou.
Olha o gajo é dado a piadinhas, sim senhor. Brincou o Cristóvão.
Bem o resto vais te apercebendo com o tempo. Está aí uma motorizada, que de forma planeada usamos e podes usar também, é só combinarmos.
Logo, deves ter aí uns 5 ou 6 camaradas não julgues que isto é Pias ou Montemor…marcámos para as sete. Mas daqui a pouco vem aí o camarada Marques, o oculista que te devem ter falado, e que te queremos apresentar. Ele é um pouco como uma referencia do partido aqui em Odemira, todos o conhecem e respeitam - um comunista à maneira - se ganhares a confiança dele, tens ali um amigo.
O Marques tinha um ar austero e cara de poucos amigos, mas cedo deu para perceber que tinha um grande coração. Parecia conhecer todo o Alentejo e falava-lhe de camaradas de Montemor, de Avis, de Évora e queria saber deles e perguntava pela família e acima de tudo queria saber do seu empenho e militância comunista.
Tiveram que interromper a conversa que prometeram retomar depois. Eram sete horas e a reunião ia começar.
Quase como tinha previsto o Cristóvão. Compareceram quatro camaradas. A Rosa e a Francelina que trabalhavam no secretariado concelhio das ucp(s), o José António que trabalhava na Câmara Municipal e o Francisco que trabalhava num café, o café que ficava ao pé do rio, junto ao jardim onde tinha estado quando chegou.
Tive quase para me meter contigo, mas não tinha a certeza se serias tu, disse-lhe o Francisco, no final.
Entretanto, o Cristóvão que tinha ido a S. Luis falar com um camarada, já regressara.
Se quiseres ensino-te a cozinhar vais ver que é uma aprendizagem fundamental para a sobrevivência. Queres aprender?
Claro.
Havia no centro de trabalho uma pequena cozinha e nela uma frigideira, um tacho, uma panela, alguns talheres e copos. Fogão de um só bico e um velho e enferrujado frigorífico completavam o equipamento.
O Cristóvão assumia-se como o cozinheiro do quase nada. De quase nada fazia um pitéu.
Levando em linha de conta a caldeirada que havia comido à tarde, estava tentado em reconhecer-lhe o estatuto de artista. Ou seria da fome?
Pois agora vamos fazer sopa de cação para o jantar. Para começar vais aí ao quintal que é do camarada Marques e trazes uma boa mão cheia de coentros, deves saber o que são coentros, não és alentejano?!
Claro que sei.
Vá rápido. Não tragas salsa.
Rápido foi. Tão rápido que não trouxe os coentros.
Atão?!
Podias ter-me avisado do cão. Quase me abocanhou as nalgas.
Ah! O freitas. Ele tinha o cão à solta?!. Bastava esticares um dedo que ele até se agachava e metia-se na barraca de rabo entre as patas. Deixa estar que eu vou lá enfrentar aquela fera. O  freitas, pobre bicho, mais manso que as coisas mansas. Chi.
E assim foi, num ápice voltou com uma mão cheia de cheirosos coentros.
Não demorou muito a sopa a estar pronta. Foi ajudando, seguindo orientações: descasca cebola, pela dois dentes de alho, lava e corta os coentros.
Caldo espesso, fumegante, aromatizado, dois ovos escalfados, vertido sobre sopas de pão duro cortado finamente.
Saborosa. Muito saborosa e acompanhada com um tinto muito bem encorpado.
Um manjar de ricos, disse o Cristóvão.
Só não percebo porque é lhe chamaste sopa de cação. Só te vi pôr farinha e os ovos.
Ah. Pois foi. Esqueci-me de pôr o cação. Deixa estar, acho que de qualquer forma não tínhamos.

António Claudino

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