domingo, 24 de março de 2013

Uma tempestade

Conto X

Havia perguntado ao Frazão como fazer para ir para os Baldios.
Simples, respondeu-lhe este, apanhas a camioneta para S. Cristóvão e desces-te nos Baldios.
É assim tão simples?!.
Sim. Claro que os Baldios não estão ali especados ao rés da estrada à tua espera. Tens que andar um bocadinho…
Nunca lá havia ido. Ia para uma reunião com o colectivo de jovens comunistas na UCP, que estava agendada para as oito da noite.
Um colectivo aguerrido e numeroso. Não podia falhar ou sequer ser tentado a adiar.
E se é assim tão simples, não tinha com que se preocupar.
Claro que estaria mais descansado se o raio da motorizada não tivesse avariado. Mas estaria lá.
Porque a noite se aproximava e o dia estava escuro, pediu ao revisor que o avisasse quando fosse a paragem para os Baldios.
A viagem entre Montemor e a paragem foi rápida. Avisado atempadamente pelo revisor, tocou a campainha e o grande e desengonçado autocarro parou ali no meio do nada.
Ouviu o ranger de ferros à mistura com o ronco do motor e eis que parte o autocarro rumo a S. Cristóvão.
Levava poucos passageiros. Reparou no ar de curiosidade de alguns deles olhando-o das janelas quando se reiniciava a marcha. Como que a perguntarem-se: o que fará aqui este franzino num dia como o de hoje.
Já sozinho, completamente sozinho, no meio do nada, apercebeu-se agora com maior nitidez que a tempestade estava para breve. Escurecia rapidamente e a noite antecipava-se.
O Frazão disse que era perto.
À sua frente a estrada e um campo vazio. Nem um arbusto, um simples carrasco que fosse,  conseguia avistar em todo o plano que avistava.
Uma estrada de terra batida, nada mais. O caminho só podia ser em frente. O Frazão explicou que ficava à direita, pois só podia  ser assim.
A estrada era ladeada  por uma linha telefónica. Os postes que a suportavam eram as únicas coisas que emergiam acima da terra. E agora, ele.
É em momentos assim que nos sentimos pequenos.
A terra imensa, plana, a perder de vista.
O céu, enorme, escuro como breu, assustador. Ao longe já se viam relâmpagos.
O caminho já o havia iniciado há uns bons minutos. Quantos? O Frazão havia-lhe dito que era perto. Estranha não avistar ainda o casario.
A carga, não é grande. A sua velha pasta na mão direita. Na esquerda, um saco de plástico com os «juventudes». Trinta, era a venda mensal habitual ali. Já pesava. Trocou a carga de mãos.
E caminhou. Sentiu um pingo frio na cara. O seu velho hábito de não gostar de guarda chuvas se calhar ia sair-lhe caro. Logo outro pingo e depois outro.
Começou a chover. São só uns borrifos pensou. Vou chegar aos Baldios antes do temporal.
Os borrifos passaram a pingos grossos. A tempestade chegou antes a ele que ele chegou aos Baldios.
O ribombar dos trovões era cada vez mais intenso. Os relâmpagos cada vez mais perto  iluminavam os campos já escuros.
O vento estava de frente. Rasteiro e cada vez mais forte.
Dobrou o saco de forma a impedir que a chuva estragasse os jornais e colocou-o, junto a si, dentro do casaco. Fechou o fecho bem até cima. Sentia-se gordo, mas funcionava como bom aparo de vento e até de algum frio…
Caminhar era cada vez mais difícil. O vento cada vez mais forte.
A tempestade agora estava ali mesmo. Forte. Negra. Fria.
Andar era tarefa penosa. O vento de frente era tão forte, tão rasteiro que ele quase se arrastava. Os trovões já não se intervalavam, as faíscas eram quase permanentes. Reparou, por mais de uma vez, que as linhas de telefone, eram percurso  de curiosas e assustadoras descargas eléctricas, dando lugar a uma espécie de fogo de artifício, de cor azulada.
Se houvesse uma árvore. Só um arbustozinho que fosse, teria cedido, mas assim não podia.
Tinha que continuar.
Os bagos de chuva grossa, eram agora granizo. Projetado pela força do vento provocava-lhe dores, parecia estar a ser apedrejado. Protegia a cara como podia, com as golas e encolhia as mãos para dentro das mangas.
No meio daquele ensurdecedor barulho, pareceu-lhe ouvir o ladrar de um cão.
Outro viajante desprevenido, pensou. Mas não via cão nenhum. Aliás não via nada, por força do negro da escuridão e do efeito de encadeamento das faíscas.
Mas voltou a ouvir ladrar.
E depois ouviu alguém gritar: «vai ajudar, homem do diabo, que aquele pobre desgraçado deve estar a cair para o lado, não tarda».
Não se apercebeu, mas havia chegado aos Baldios.
Ajudado entrou em casa. Sentaram-no junto à lareira. Foram buscar uma toalha com que enxugou a cabeça.
Na casa onde foi acolhido, estava um casal de meia idade. Trabalhadores da UCP, disseram-lhe
Minimamente retemperado, apresentou-se e disse ao que ia.
Pois..na dava pra perceber o que é que andava a fazer por estas paragens num dia como o de hoje…disse-lhe o homem.
Mas olhe que não há reunião, disse-lhe a mulher. O meu sobrinho é que estava a organizar isso, mas por causa da borrasca, nem de trator se consegue passar para o Monte da Chaminé que era para onde eles estavam a organizar. Aqueça-se, que quando isto amainar eu já o chamo que ele mora aqui ao lado e ele depois explica.
Amainada a tempestade, chegou o sobrinho, o Zé Francisco que confirmou a anulação da reunião. É que sabes camarada, a gente somos alguns trinta e só temos condições de nos reunirmos no Monte da Chaminé e por causa da trovoada não conseguimos passar, vai uma enxurrada danada no ribeiro…nem de trator. Eu tentei telefonar para avisar, mas não consegui, o telefone não dava nada.
Que horas são, perguntou?
Oito.
Da paragem da camioneta até aqui, quantos quilómetros são? Interrogou de novo.
Cinco quilómetros bem medidinhos, respondeu-lhe o Zé Francisco.
Olha, naquele saco estão os «juventudes» se calhar estão também a precisar de uma secagenzita…
Hoje ficas aqui connosco, disse-lhe o homem. Amanhã o jeep da cooperativa vai a Montemor e leva-te.
Jantou com eles sopa de couves com toucinho.
Tão quentinhas.
Tão boas.

António Claudino

Um conto em homenagem ao Pedro e ao Gama

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